Não importa a época, Ordens Militares sempre são um assunto recorrente no imaginário popular e provavelmente um dos legados culturais mais vivamente recordados da Idade Média Europeia. Seu nome, embora não tão diretamente dedutível para um leitor mais leigo, faz alusão às suas raízes intrinsecamente religiosas: no Catolicismo Medieval, “ordens” diziam respeito tanto as posições hierárquicas da Igreja, como diáconos, padres e bispos, quanto às diversas sociedades monásticas que atendiam por este nome, tais como beneditinos, dominicanos etc. Estas sociedades, ou ordens, eram organizações conventuais que seguiam seus próprios regimes e rotinas religiosas, mas sempre caracterizadas pela sua renúncia e abominação a qualquer forma de violência e derramamento de sangue.

Quando surge e se canoniza a sociedade dos Cavaleiros Templários, no século XII, dá se início a um novo gênero de Ordem: uma que une o regime monástico e o militar, criando o arquétipo de soldado-monge e resignificando o “Milites Christi” – um conceito até então puramente alegórico do cristão em guerra contra o pecado – em um verdadeiro braço armado da fé. Essa sacralização da violência, termo que aqui tomamos de forma acrítica, foi definitivamente uma das maiores revoluções religiosas do Cristianismo Medieval; revolucionária o suficiente para receber o desprezo do Cristianismo Bizantino e que, talvez numa perspectiva histórica, seria inaceitável para os antigos Pais da Igreja. Mas, e se esse conceito tão inovador e polêmico de guerreiro conventual tivesse, na verdade, bases em fontes não-cristãs? Será que faz sentido que uma ideia tão alheia ao Cristianismo tivesse, de fato, inspirações externas?

A tese de que as Ordens Militares foram de alguma forma influenciadas por instituições análogas no Mundo Islâmico vêm sendo proposta desde o século XIX (FEUCHTER, p. 1), pré-datando até mesmo a concepção da História como uma ciência de direito e, mesmo nos dias de hoje, persiste como uma explicação que recebe adesão de pelo menos parte dos historiadores da Academia.

De acordo com essa linha, as Ordens Militares teriam tirado inspiração das arrábitas, ou ribāts, muçulmanas.

“O equivalente mais próximo de um uso islâmico parece ser o termo ribāt, que é usado desde o século oitavo para denotar um edifício, às vezes – mas não necessariamente – fortificado, onde muçulmanos iriam permanecer durante períodos de devoção. Estes exercícios espirituais por vezes incluíam a participação numa guerra santa ou em defesa de terras muçulmanas contra um ataque de fora. Assim, a instituição atraiu alguma atenção acadêmica, inicialmente como um equivalente muçulmano de um mosteiro e depois como um possível modelo para a emergência de ordens militares cristãs compostas de monges combatentes no início do século XII.

[...]

O primeiro uso da raiz rbt em conexão com guerra fronteiriça no Mundo Islâmico parece ser encontrada no Futūh al-Buldan de al-Baladhuri. Embora seja uma compilação do final do século IX, o trabalho de al-Baladhuri preserva muitos dos usos anteriores. Ele descreve como o califa omíada Mu’awiya, ainda governador da Síria (isso antes de 661) formou (rattaba) uma rabita de soldados muçulmanos na recentemente conquistada cidade de Malatya, na fronteira bizantina. Todavia, enquanto seu uso está conectado com guerra fronteiriça, ela não denota um edifício ou fortaleza, mas uma unidade militar.” (KENNEDY, p. 161-162)

Pelo menos desde o século IX, o termo arrábita já passava e se referir a uma espécie de edifício religioso ascético que opera de forma similar a um mosteiro, geralmente mais ou menos fortificado, com atividades marciais dedicadas à causa religiosa (Ibid, p. 163). Eventualmente, guerreiros ascéticos (murabit) associados à arrábitas já povoavam todo o território mais fronteiriço do Mundo Islâmico, desde a Palestina e as fronteiras nas estepes iranianas até regiões de fronteiras em Al-Andaluz, onde temos evidências arqueológicas destas estruturas e destes guerreiros conventuais em Lisboa, Guardamar, Cadiz, Almeria, Toledo, Talavera e Madri (Ibid, p. 167). Em certas regiões, arrábitas foram fundadas para proteger o povo de ataques vikings! (Ibid, p. 166).

Por conta do seu caráter ascético e devocional, o ethos sufista encontrava grande recorrência nesses ribatins. Culturas islâmicas mais urbanas costumavam designar arrábitas sufis como khanqahs, zawiyas ou tekkes, embora nestes casos não houvesse uma conotação igualmente militar como nos séculos anteriores.

Um exemplo notório desta síntese encontra-se em ninguém menos que o próprio Ibn Qasi, nativo de Silves, que constrói um ribat em Ponta Atalaia e dá origem ao Movimento Muridino, uma sociedade de cavalaria espiritual regida por princípios de defesa dos fracos e necessitados e da prática ascética sufi. Com o crescimento vertiginoso da influência desta sociedade de guerreiros conventuais, os muridinos tornaram-se tão poderosos no século XII que acabaram por conquistar e unificar todo o território das Taifas de Silves, Algarve e baixo Alentejo, tornando-se um Estado tampão entre o Império Almorávida e o novo Reino de Portugal. Mas, curiosamente, seria Afonso Henriques e os cavaleiros templários a se alinharem diplomaticamente aos Muridinos, criando assim uma oposição comum à orientação mais puritana da Dinastia Almorávida, mais ao Sul

“O pacto simbólico que então faz com D. Afonso Henriques sela o ideal sinárquico que une a cavalaria templária à cavalaria islâmica muridínica, afinal uma convergente cavalaria espiritual. É esse arco voltaico de natureza iniciática que liberta a sinergia donde Portugal virá a brotar”(ALVES, 2007, p. 75)

É importante notar quão importante era o papel desempenhado pelos murabitun justamente porquê, durante a maior parte da história andaluza após o período das taifas, o morabitino foi não somente o nome dado às moedas utilizadas no sistema de câmbio dos califados e emirados Norte-Africanos e ibéricos do período, mas ele mesmo foi adotado pelos próprios reinos cristãos da península; sendo inclusive o sistema de base para o sistema de aquantiados e suas obrigações militares, conforme determinado pelo rei de Castela na Ordenança de Burgos (1385).

Três ribats: O Ribat-i Malik no Uzbequistão, o Ribat de Monastir, fundado em 796 pela dinastia abássida na Tunísia, e o Ribat-i Sharaf do século XII no Irã.

Ainda assim, o regime de murabitun e das arrábitas mantinha distintivos significativos de qualquer análogo formado por católicos no século XII.

“Podemos elucidar muitas conclusões amplas. A primeira delas é que fazer ribāt não significava uma dedicação vitalícia. Era, ao invés disso, um compromisso temporário. Ibn Abi Zamanin cita a tradição para esclarecer isto: ‘para um homem que faz ribat por dez dias, Deus concederá perdão da quarta parte da sua punição. Para o homem que faz trinta dias, três quartos da sua punição; e para qualquer um que fizer 40 dias, Deus irá poupá-lo do inferno’. O período do Ramadã foi especialmente popular para o ribāt”.  (Ibid, 167)

É difícil não encontrar análogos com o próprio sistema de indulgências promovido pela Igreja a partir das Cruzadas, embora qualquer semelhança possa não ser muito mais que pura coincidência.

É claro que a influências dos morabitinos sobre as Ordens Militares está longe de ser um assunto resolvido historiograficamente, mas ainda assim, o fato de permanecer como uma possibilidade ou mesmo uma certeza entre setores acadêmicos por tanto tempo é um indicativo interessante das possibilidades e desdobramentos da influência islâmica sobre a própria teologia e prática cristã ocidental durante a Idade Média, conforme já sustentado pelo arquivista espanhol José Antonio Conde (1766-1820):

“Estes rabitos, ou fronteros islâmicos, exercitavam uma vida de muita austeridade, e se dedicavam voluntariamente ao uso contínuo das armas, e se obrigavam por juramento a defender suas fronteiras de assaltos, ataques ou cavalgadas dos almogávares [uma classe de soldados de infantaria aragonesa] ou de guerreiros cristãos. Eles eram todos cavaleiros selecionados e de alta resistência em seus ofícios. Eles não tinham permissão para fugir, mas tinham de lutar intrepidamente e morrer antes de entregar seu posto. Parece muito provável que foi destes rabitos que se originaram na Espanha, assim como entre cristãos no Oriente, as Ordens Militares, tão famosas por suas proeza e serviços prestados ao Cristianismo. Ambas as instituições eram muito similares” (CONDE, 1820, p. 619)

Bibliografia:

KENNEDY, Hugh. The Ribat in the Early Islamic World.

CONDE, José A. Historia de la dominación de los árabes em España, sacada de vários manuscritos y memorias arábigas. 1820.

FEUCHTER, Jorg. The Islamic Ribāt: a model for the Christian Military Orders? Sacred Violence, Secularized Concepts of Religion and the Invention of a Cultural Transfer

ALVES, Adalberto. Portugal e o Islão Iniciático. Ésquilo, Lisboa 2007