Há eventos e figuras reais que desafiam aquilo que imaginamos sobre temas chave da nossa educação sobre o mundo: um deles é a exploração da América, pois comumente aprendemos que não só este evento, mas a era da exploração como um todo, foi um fenômeno exclusivamente europeu. Uma dessas figuras é Estevanico, cujo papel como explorador africano na América do Norte é significativo: suas experiências destacam as complexas interações entre colonizadores europeus, escravos africanos e tribos nativas americanas no início da exploração e colonização das Américas. Apesar das informações limitadas disponíveis sobre a vida de Estevanico, sua história continua a inspirar e contribuir para nossa compreensão deste período crucial da história.

No início do século XVI, a fome assolava Marrocos nos tempos da dinastia dos Wattasidas e, no verão de 1520, um boato perigoso espalhou terror nos corações dos tranquilos habitantes de Azemmour: as notícias sobre a chegada iminente de uma frota de guerra portuguesa à região. Os seus habitantes sabiam muito bem que as condições políticas eram difíceis, pois o governo central que estava nas mãos dos Wattasidas parecia incapaz de resistir às repetidas incursões de cristãos que aconteciam de tempos em tempos ao longo das costas atlânticas. Os portugueses conheciam bem esta vila, e há alguns anos usufruíam da sua mais importante riqueza na forma de azeite sob a forma de imposto especial de consumo. No entanto, a coroa portuguesa não chegou neste ano com o imposto habitual. Portanto, o boato da invasão era justificado.

A costa de Azemmouri

E foi assim que, início do mês de agosto de 1520, milhares de navios e embarcações surgiram no horizonte do Oceano Atlântico. E quando chegaram às praias adjacentes a Azemmour, deles desembarcaram cerca de 8.000 portugueses, que invadiram a pacata cidade. Como de costume, os ibéricos começaram a saquear as riquezas e a capturar seus escravos marroquinos favoritos. Um dos jovens sequestrados não poderia ter previsto o destino extraordinário que a vida lhe reservaria depois disso. Este jovem era Mustafa Azemmouri (مصطفى الزموري), nascido por volta de 1500 e que ficou célebre com o nome Esteban de Dorantes, pois foi vendido ao comerciante Andrés Dorantis, na cidade de Cádiz. Este Andrés Dorantes estava decidido a viajar ao Novo Mundo em busca de ouro, fortuna e fama. Não demorou e chegou nas ilhas coloniais espanholas do Caribe junto do agora Estevanico, e ali fortaleceu a relação do escravo com seu senhor, que se tornou comandante de um corpo de infantaria, o que abriu as portas para que ele e seu escravo de Azemmouri participassem da primeira expedição às regiões de atual Flórida, e as regiões virgens repletas de ouro e pedras preciosas na imaginação dos conquistadores espanhóis e portugueses.

Mas as coisas não foram fáceis: a primeira expedição liderada por Estevanico, que era parte da expedição Narváez, chegou na região da atual Flórida em 1527, mas acabou com a morte de 400 tripulantes: apenas 4 homens sobreviveram às pestes, ataques dos nativos, sede e fome. Contaremos agora sobre esta tragédia, que foi ponto chave na vida de Estevanico, um dos quatro sobreviventes mencionados. No começo do século XVI, o rei da Espanha Carlos I decidiu patrocinar uma expedição para colonizar o golfo do México e a Flórida: o comandante Pánfilo de Narváez (1470-1528) foi nomeado governante espanhol do estado da Flórida e logo em seguida colocou seus navios no rio Mississippi, e o fracasso veio retumbante e veloz: as fortes tempestades afundaram muitas embarcações, enquanto as restantes foram obrigadas a fugir e passar o inverno em Cuba, junto de Estevanico. Foi então que em fevereiro de 1528, as embarcações partiram de Cuba e desceram na baía de Tampa, e ali Estevanico provou seu tino de explorador: junto de seus assistentes, conseguiu explorar a região durante uma madrugada, escondido dos peles-vermelhas da região, e encontrou pedaços de ouro – o que foi um indicativo de abundância de ouro daquela terra. Entretanto, as condições da terra eram duras: pestes, fome e os ataques dos pele-vermelhas causavam mortes em uma quantidade assustadora, a desinteria causada pela água pantanosa da região também castigava e, para piorar, as embarcações atracadas estavam destruídas por outras tempestades. A morte ali seria certa e não sobrou escolha além de começar a construir embarcações improvidas com materiais da região. Estevanico coordenou tais construções improvisadas e por seis semanas passou a coletar carne de cavalo salgada para a fuga e fez uso até das vestes armazenadas para confeccionar velas. Na embarcação improvisada de Estevanico, estavam Álvar Núñez Cabeza de Vaca (1492 – 1560) e o famoso Alonzo del Castillo Maldonaldo (Nascimento Desconhecido – 1547). Mas como diz o ditado: “nada está tão ruim que não possa piorar...” A pouca água armazenada, que já era de condição insalubre, começou a apodrecer e, para agravar a situação, o forte calor também apodreceu a carne que não fora bem salgada, já que também não havia muito sal. Apenas a embarcação de Estevanico e a de conseguiram atracar em uma ilha que chamaram de “Maladia”, isto é, “miséria”, pois as outras afundaram em tempestades. Foi nesta ilha, hoje atual Galveston Island, no Texas, que a situação conseguiu piorar.

A ilha “Maladia”, atual Galveston Island, nos dias de hoje

A ilha não foi chamada de “Maladia” por acaso: insalubre, sem água doce potável de fácil acesso, repleta de animais peçonhentos e selvagens e... muitos nativos pouco amistosos. Dos 85 sobreviventes que desceram das duas embarcações, a morte foi tomando um a um, até que apenas os famosos 4 sobreviventes restaram. Foi então que as habilidades salvíficas se mostraram salvíficas: alguns nativos estavam a passar por algumas doenças e pestes, um fato que levou os sobreviventes espanhóis a usar uma artimanha: começaram então a recitar frases em latim sob os enfermos e, por força do destino, acabaram curados. Isso fez com que os nativos vissem os náufragos perdidos como legítimos “filhos do sol” e, então, começaram a proteger e sustentar os sobreviventes: neste evento, Estevanico aproveitou para dominar os dialetos locais e foi o único a aprender os seis dialetos nativos da região. Assim, não demorou para Estevanico ser feito uma espécie de diplomata improvisado da região.

E é aqui que a narração fica pitoresca e, de certa forma, cômica como um filme Hollywoodiano: as notícias dos milagres dos três espanhóis e do africano ganharam a região. Os nativos, até então pouco amistosos, passaram a organizar caravanas em busca de cura e ofertavam comida, bebida, peles, mantas, pérolas, esmeralda e cobre. Uma carta rasurada, de um autor por este motivo desconhecido, assim descreve Estevanico em tais dias de glória: “Seus braços são imensos e fortes, adornados de cordões de joias de turquesa e sinos. Seu dorso sempre nu é repleto de amuletos e ele é acompanhado por muitas índias, que lhe foram dadas como concubinas pelas tribos.” Nesta expedição de milagreiros, os quatro cruzaram o Texas e chegaram ao Rio Bravo, no México, onde forma recebidos com muita honra: o chefe nativo da região enfeitou suas cabeças com penas cheias de joias da região. A autoridade dos “filhos do sol” era imensa, mas Estevanico não queria ficar preso à tarefa de curandeiro. Ao chegar em Culicán, atual México, Estevanico se alistou na unidade militar de San Miguel e rumou à capital do México.

Foi ali que Estevanico informou aos representantes da coroa espanhola sobre a farta existência de ouro nas lendárias “sete cidades de Cibola”, sobre as quais ouvira lendas dos nativos: seriam sete cidades ao norte de passado glorioso, repletas de construções adornadas com ouro e com muitas minas a explorar. Estevanico estava certo da legitimidade de tais histórias e o ouro que vira naquela madrugada parecia confirmar tudo isso. Não demorou e o vice-rei espanhol o nomeou líder da campanha de 1539, em busca do ouro das sete cidades de Cibola.

Estevanico, representado na liderança de uma expedição pelo atual Novo México

A campanha saiu em fevereiro de 1539 em duas partes: uma liderada por Estevanico e outra por um frade chamado Pe. Marcos. Obviamente, a campanha de Estevanico ganhava mais terreno: sua fama de “filho do sol” fez com que os nativos fossem guias nativos e fornecessem apoio. Mas... era um mundo repleto de reviravoltas.

Um documento histórico espanhol que data do ano de 1540 diz:

“Atrás de Esteban – Estevanico – estava o frei. Mas Estevanico pensou que poderia ganhar a honra de descobrir as cidades de ouro por conta própria, e que isso o tornaria um homem corajoso e empreendedor aos olhos dos outros. Assim, ele deixou uma grande distância entre ele e o restante da missão. E buscou rumar para Cibola com a companhia dos índios... Estevanico chegou a Cibola, carregando uma quantidade de pedras preciosas de turquesa que os nativos lhe deram. Além de um grande número de lindas mulheres que lhe foram presenteadas pelos índios que o acompanhavam. Eles costumavam se juntar a ele sempre que ele cruzava uma tribo, acreditando que ele os protegeria de todos os perigos.”

Mas os habitantes de Cibola eram mais desconfiados do que seus companheiros de tribo que acompanhavam o marroquino. É por isso que o impuseram em prisão domiciliar em uma caverna fora da cidade, e seus sábios e anciãos o interrogaram por três dias para descobrir os motivos de sua delegação antes de se reunirem para decidir seu destino. Estevanico disse a seus interrogadores que dois homens brancos se juntariam a ele e que eram enviados por um nobre que sabia o que havia nos céus, e acrescentou que o frei e seus companheiros seriam encarregados de doutrinar os índios. Mas os chefes de Cibola não acreditaram nele e pensaram que Estevanico era um espião de uma tribo que queria invadir suas terras, assim como não aceitavam que o mensageiro dos brancos fosse um negro. Além de tudo isso, seus adornos de turquesa e suas muitas mulheres irritaram os chefes, que decidiram matá-lo. Esta é a versão espanhola do fim de Estevanico.

Mas nativos da região e outros pesquisadores têm outras histórias diferentes que repetem sobre o assassinato de Estevanico. Segundo uma das narrativas de uma tribo chamada “zuni”, que acredita que a coruja é a ave da morte e seu prenúncio, viu Estevanico chegar com maleta médica efeita de penas de coruja, então o povo viu isso como um mau presságio e decidiu matá-lo. Há também uma narrativa semelhante que diz que Estevanico enviou ao chefe de Cibola dois mensageiros carregando recipientes contendo alguns fios e duas penas, uma branca e outra roxa, que eram cores da morte, e o chefe entendeu como um aviso de guerra. Ao chegar na cidade, todos da expedição foram presos. No dia seguinte, Estevanico tentou fugir com seus companheiros, mas os protetores da cidade os perseguiram e mataram todos, sendo Estevanico o último a morrer, atingido por uma flecha. Outra história conta que o chefe de Cibola mandou degolar Estevanico e cortar seu pênis, que foi enviado às outras tribos para demonstrar que ele era apenas um ser humano e não um filho do sol.

As sete cidades douradas nunca foram encontradas e apenas a expedição de Vazquez de Coronado (1510 - 1554) alcançou Cibola. Entretanto, Cornado não tinha a intenção de ser reconhecido pelos nativos como diplomata ou líder tribal: a cidade foi severamente atacada pela região e virou uma decepção aos espanhóis. Não havia nenhuma grande construção e muito menos fartura: tudo era muito modesto. Assim, o mistério das sete cidades douradas de Cibola e suas magníficas construções douradas entraram no imaginário da mesma forma que a lenda de El Dourado, da Amazônia.

Temos na história de Estevanico diversos pontos interessantes: um dos primeiros africanos em solo americano, grandes tragédias climáticas e culturais e a morte prematura em um provável incidente diplomático – tudo isso com uma pitada de curandeirismo e misticismo, típico do encontro entre o Velho Mundo e o mundo recém-descoberto, que remete ao que Levi Strauss descobriu ao analisar as tribos nativas das Américas: os humanos de todo o globo são mais parecidos do que pensam.  

 Bibliografia:

  • ABTIBOL, Michel (2014). Histoire du Maroc. Tempus Perrin.
  • MACDOUGALD, James E. (2018) The Pánfilo de Narváez Expedition of 1528: Highlights of the Expedition and Determination of the Landing Place. Lulu Publishing.
  • MACDOUGALD, James E. (2021) The Maps That Change Florida's History: Revisiting the Ponce de León and Narváez Settlement Expeditions. Mardsen House.
  • GLASRUD, Bruce A. (2013). African American History in New Mexico: Portraits from Five Hundred Years. University of New Mexico Press.
  • MARSH, Carole (2003). Alvar Nunez Cabeza de Vaca: Explorer and Survivor. Gallopade.