Ao longo da História Islâmica, podemos observar como diversos sectos advindos de especulações teológicas esotéricas acabaram por separar-se da ‘ummah, o corpo dos muçulmanos e sua religião, para criarem sua própria comunidade com suas próprias crenças, distanciando-se e quebrando, desse modo, com a própria religião islâmica e originando religiões efetivamente separadas. Alguns exemplos de algumas dessas religiões, seguidas até hoje, são os druzos, os yazidis, os alauítas e os yarsânis do Curdistão. Tais religiões originaram, todavia, em um passado um tanto distante, medieval; neste texto, veremos sobre uma religião relativamente recente que, como elas, também fez seu caminho para fora do Islã: os Baháis.

Os baháis são uma comunidade religiosa originada no Irã na primeira metade do século XIX, sucedendo uma outra religião: o bábismo. O Bábismo foi fundado em 1844, florescendo no Irã até 1852 (quando o Báb foi exilado e sua comunidade reprimida) por um estudante muçulmano xiita chamado ʻAli Muhammad Shirazi, que primeiro assumiu o título esotérico de Báb (“Portão” em árabe e persa), do qual essa religião inicial recebeu seu nome, pela crença de que ele próprio seria um portão místico para o Décimo Segundo Imam, o Imam Mahdi que, na teologia xiita, virá junto do Profeta Jesus instaurar uma sociedade mundial baseada no monoteísmo e na justiça. No entanto, ao longo de seu ministério, seus títulos e reivindicações sofreram muita evolução à medida que o Báb progressivamente delineava seus ensinamentos, dentre os quais a doutrina das manifestações de Deus, que basicamente dizem que, através da História, Deus manifestava-Se de diferentes formas em diferentes “Mensageiros” e “Profetas”, tendo um deles sido Muhammad, outro Jesus, outro Buda, etc.. O movimento Bábí sinalizou uma ruptura com o islamismo xiita, iniciando um novo sistema religioso com suas próprias leis, ensinamentos e práticas, como assim seria o seu sucessor, o Bahaísmo.

O Báb, tendo sido radicado na escola xiita do Shaykhismo, que postulava intepretações alegóricas, esotéricas e místicas para o Quran e para a própria religião islâmica, logo começou a desenvolver sua própria doutrina, que expôs em suas obras e ensinamentos. Após conseguir seu primeiro convertido, em 1844, Shirazi assumiu o nome/título de Báb e começou a espalhar sua palavra, definitivamente cismando com o Islã. Sua dawah, isto é, proselitismo, não duraria muito: em 1848, o crescente fervor dos bábís e a oposição dos clérigos muçulmanos levaram a vários confrontos entre os bábís e o governo, sendo este apoiado pelos ulemás. Após a morte de Mohammad Shah Qajar, o Xá do Irã, uma série de lutas armadas e revoltas eclodiram no país, em confrontos que resultaram em massacres de bábis, no que os autores baháis dão uma estimativa de 20.000 bábís mortos de 1844 até o presente, com a maioria dessas mortes ocorrendo durante os primeiros 20 anos, justamente na época das rebeliões e na sucessão destas, que foram seguidas de represálias e massacres contra a população civil pelo exército do Xá. Em pleno calor da revolta, no ano de 1850, o Báb, com um de seus discípulos, foi trazido de sua prisão na cidadela de Teerã para Tabriz; lá, foi publicamente fuzilado em frente à cidadela. Seu corpo, depois de exposto por alguns dias na mesma cidadela, foi supostamente recuperado pelos bábís e secretamente transportado para um santuário perto de Teerã, de onde foi finalmente transladado para o Monte Carmelo, na atual Haifa, em Israel.

 


O santuário/túmulo do Báb, em Haifa, Estado de Israel

Antes de morrer, o Báb deixou em suas doutrinas que ainda viria, depois dele, uma outra manifestação de Deus, que seria o tão aguardado Mahdi; esta manifestação foi por ele chamada de “Aquele ao qual Deus tornará manifesto”. No espaço de 13 anos entre 1850 e o ano em que Mírzá Husayn ʻAlí Núrí reivindicou o dom da profecia e da manifestação, quase 25 outros reivindicantes do título apareceram. Nenhum deles, no entanto, contou com a popularidade que Mirza Nuri contou: após ser aprisionado em Teerã em 1852, ele foi transferido para Bagdá, tornando-se prisioneiro do Sultão Otomano nesse processo. Sendo liberto e 1863, reinvindicou para si o título de Mahdi e ‘Aquele que Deus fará manifesto’, sendo reconhecido pela grande maioria dos bábis em tempo recorde, exceto por seu meio-irmão e companheiro de cela, o líder espiritual dos bábis, Subh-e-Azal. Adotando o nome de Bahá'u'lláh, Mirza Nuri completava, então, o “ciclo das religiões”.  Subh-e-Azal, todavia, não aceitou isso, e aí ocorreu então a última cisão entre os seguidores do Báb: os seguidores de Bahaullah e os seguidores de Subh-e-Azal. Ao longo do resto de sua vida, Baháulláh ganhou a fidelidade de quase todos os Bábís, que vieram a ser conhecidos como Bahá'ís, enquanto um remanescente dos Bábís ficaram conhecido como Azalis, cujos números, por mais de um século até hoje, nunca passou da casa das centenas.

Após partir de Bagdá, Bahaullah passou menos de quatro meses em Constantinopla. Depois de receber cartas em um tom um tanto quanto mal-educado e repreensivo do líder religioso persa, as autoridades otomanas se voltaram contra ele e o colocaram em prisão domiciliar em Adrianópolis (hoje Edirne), onde permaneceu por quatro anos, até que um decreto real de 1868 baniu todos os ábís para a ilha do Chipre ou a cidadela de ‘Akkar, na Palestina. Foi dentro ou perto da colônia penal otomana de ‘Akkar, no atual Israel, que Bahaullah passou o resto de sua vida. Após um confinamento inicialmente estrito e severo, ele foi autorizado a viver em uma casa perto de ʻAkkar, enquanto ainda era oficialmente um prisioneiro daquela cidade. Lá ele veio a falecer em 1892. Os baháis consideram seu local de descanso em Bahjí como a Qiblah para o qual eles se voltam em oração todos os dias Lá, em Haifa, foi construída sua tumba no Monte Carmelo e, perto da mesma, encontra-se a sede do movimento bahái mundial. Ele produziu mais de 18.000 obras em sua vida, em árabe e persa, das quais apenas 8% foram traduzidas para o inglês. Durante o período em Adrianópolis, ele começou a declarar sua missão como mensageiro de Deus em cartas aos governantes religiosos e seculares do mundo, incluindo o Papa Pio IX, Napoleão III da França e a Rainha Vitória da Grã-Bretanha.

As crenças báhais são na realidade bem simples, sem intrincados sistemas metafísicos como o Alauísmo, por exemplo, que também se originou de um movimento místico dentre do Islã xiita duodecimano. Os baháis creem num Deus únicos, incompreensível e eterno, que manifesta sua vontade através de seres divinos que aparecem de tempos em tempos para chamar os humanos à uma religião mais “justa” e “humana”, de modo que até mesmo figuras como Buda, Krishna e Zoroastro são considerados canonicamente como Profetas de Deus pela crença Bahái. O maior de todos, para eles, no entanto, é Baháulláh, que teria sido o último e o Mahdi (tal qual os ahmadiyya ou qadianis creem a respeito de seu fundador, Mirza Ghulam Ahmad).

Tal fato acima visto, nos dá pistas para outra crença importantíssima que caracteriza os baháis como uma comunidade diferenciada: eles creem na unidade das religiões e na igual validade de todas elas, embora creiam que, como numa hierarquia, o baháísmo esteja ligeiramente acima de todas elas. Desse modo, pode-se dizer que o baháísmo é uma religião universalista e até mesmo, de certa forma, perenialista, uma vez que seu conceito de universalismo é muito parecido e compatível com o conceito de Unidade Transcendente das Religiões dos filósofos orientalistas perenialistas como René Guenón, Frithjiof Schuon e Titus Buckhardt. Os baháis visam, através do diálogo ecumênico e da promoção de sua crença, alcançar, num futuro próximo, uma sociedade mundial livre de preconceitos de classe, raça, gênero e nacionalidade, de modo que, à semelhança dos comunistas, os baháis rejeitam não apenas as divisas tradicionais da sociedade e suas hierarquias, mas rejeitam também o conceito de nacionalismo e estados-nação, vendo isso como mero produto da mão humana intervindo na Criação de Deus. Desse modo, pode-se caracterizar também a religião bahaísta como teleológica e utópica, visando criar uma sociedade perfeita baseada em imperativos morais ditados pela crença bahái, tais quais como a gentileza, o amor fraternal, a educação e igualdade entre as classes e os sexos; em suma, nos ensinamentos baháis está o objetivo de uma ordem mundial unificada que garanta a prosperidade de todas as nações, raças, credos e classes. A unidade tem grande valor no baháísmo, e Baháulláh estabeleceu regras para manter a comunidade unida e resolver desacordos. Dentro desta estrutura, nenhum seguidor individual pode propor interpretações 'inspiradas' ou 'autorizadas' das escrituras, e os indivíduos concordam em apoiar a linha de autoridade estabelecida nas escrituras baháís. Essa prática deixou a comunidade bahá'í unificada e evitou qualquer fratura grave.


A Casa da Justiça Universal em Haifa, Israel. É o “Vaticano” dos Baháis.

Outras práticas se assemelham muito àquelas dos muçulmanos: rezar cinco vezes ao dia, não tomar álcool, ser gentil, não fofocar (esse é um dos pilares do bahaísmo) e não cometer fornicação (isto é, sexo pré-marital), além de terem também uma influência muito grande do Islã devido à sua origem. Os baháis consideram, todavia, que do mesmo modo que para os muçulmanos o Islã ab-rogou o Cristianismo e, o cristianismo, ao Judaísmo, o Bábismo ab-rogou o Islã e o Baháismo, o Bábismo.

Os baháis, desde os tempos do Báb, têm ativamente propagado a igualdade entre os sexos e a educação para mulheres (que não era acessível à maioria delas no século XIX em nenhuma parte do mundo, basicamente), bem como o “desvelamento”, isto é, o não-uso do véu dentre as mulheres, além de ter fortes opiniões e tendências seculares e pró-ocidentais. O estudioso arabista e orientalista Denis MacEoin, ele mesmo um bahái que depois deixou a religião, certa vez disse como comentário aos textos do Báb e Baháulláh:

“[As crenças e regras são uma] mistura de regras e regulamentos que às vezes são pouco mais do que mero capricho, girando em torno de algumas das obsessões do próprio Báb sobre limpeza, comportamento educado e elegância. É uma shari'a, mas não em qualquer sentido prático. Certamente, não parece ir a lugar nenhum... aqui e ali encontramos indicações de que o Báb ficou impressionado com os europeus e que ele queria que seus seguidores os imitassem.” [1]

Fato é que até hoje os baháis são bem-inteirados em agendas progressistas, tanto dentro de Israel quanto em países que crescem, exceto no que concerne as questões da comunidade LGBT, uma vez que homossexualidade é expressamente proibida, e apesar de, também, não se envolverem em política partidária.

Além disso, os báhais, como é de se esperar, sempre foram uma comunidade pressionada e marginalizada no Irã, com muitas vezes o Xá tentando divertir a atenção do público da situação do país através da perseguição dos mesmos. A situação dos baháis, no entanto, piorou profundamente com a ascensão do Regime dos Aiatolás no Irã após a Revolução Islâmica: onde mais de 200 baháís foram executados entre 1978 e 1998, com a comunidade sofrendo assédio e marginalização por parte do poder público e da própria sociedade iraniana. O patrimônio público báhai também foi alvo de investidas do governo, que demoliu casas, locais de reunião, escolas e cemitérios da comunidade. Os baháís continuam a ser perseguidos em alguns países de maioria islâmica, cujos líderes não reconhecem a Fé Baháí como uma religião independente, mas sim como apostasia do Islã. As perseguições mais severas ocorreram no Irã,. Os direitos dos bahá'ís foram restritos em maior ou menor grau em vários outros países, incluindo Egito, Afeganistão, Indonésia, Iraque, Marrocos, Iêmen, e vários países da África Subsaariana.


Escola para garotas bahái em Teerã, no Irã. Foi fechada por odem do Xá em 1934.

O motivo dessas perseguições, no entanto, vão além do mero preconceito histórico ou recente: como foi supracitado, é mais que verificável que através da história o bábismo e o baháismo foram ameaças subversivas à ordem política e religiosa das sociedades tradicionais por onde se espalham (notadamente o Irã). Isto é, trocando em miúdos, num país secular, de maioria não-religiosa, progressista como Israel, os baháis não têm muitos motivos para se queixarem, uma vez que seus objetivos, isto é, uma sociedade european-like, europeizada e fundada em valores iluministas, já está em vigar. Sua existência e insistência em tentar criar um estado paralelo no Irã, sempre acabou lhes valendo a palmatória da conservadora sociedade cujas opiniões sempre foram ditadas pelos ulemás xiitas. Hoje em dia, em virtude da estreita conexão entre os baháis e o Estado de Israel – do mesmo modo que na Pérsia Antiga havia uma estreita conexão com os britânicos – um dos principais argumentos dos Aiatolás para sua pressão sobre a comunidade é justamente o de trabalharem e agirem como agentes pró-ocidente e pró-Israel dentro da República Islâmica do Irã. Acrescenta-se a isso o fato histórico de o baháismo ter buscado historicamente substituir o Islã e crescer em cima dos muçulmanos. Numa época e região onde religião e poder andas de mãos dadas, apostasia do Islã sempre foi visto como uma forma de subversão e mesmo traição ao Estado; desse modo, dentro da visão islâmica de juristas mais estritos, a existência da fé bahái é intolerável dentro de uma sociedade islâmica, não apenas por causa de suas conexões ocidentais, mas pela sua própria natureza revoltosa e globalista.


Cemitério báhai de Yazd, no Irã, após sua demolição por agentes do governo.

Por volta de 2020, havia cerca de 8 milhões de bahá'ís no mundo. Em 2013, dois estudiosos da demografia escreveram que: "A Fé Baháí é a única religião que cresceu mais rápido em todas as regiões das Nações Unidas nos últimos 100 anos do que a população em geral; ela foi, portanto, a religião que mais cresceu entre 1910 e 2010, crescendo pelo menos duas vezes mais rápido que a população de quase todas as regiões da ONU." As maiores proporções da população Baháí mundial foram encontradas na África Subsaariana (29,9%) e no Sul da Ásia (26,8%), seguido pelo Sudeste Asiático (12,7%) e América Latina (12,2%). Populações menores são encontradas na América do Norte (7,6%) e Oriente Médio/Norte da África (6,2%), enquanto as menores populações são encontradas na Europa (2,0%), Australásia (1,6%) e Nordeste da Ásia (0,9%).

Bibliografia:

  • [1] MACEOIN, Denis (1997). "Deconstructing and Reconstructing the Shari'a: the Bábí and Baháʼí Solutions to the Problem of Immutability.”
  • Multiple Authors (15 December 1988). "Bahaism". Encyclopædia Iranica. III
  • BARRETT, David V. (2001). “The New Believers: a survey of sects, cults, and alternative religions”. London: Cassell & Co.
  • Iran Human Rights Documentation Center (2008). Crimes Against Humanity: The Islamic Republic's Attacks on the Baháʼís. New Haven, CN.
  • "Bahāʾī Faith". Encyclopædia Britannica - (19 November 2020).
  • HARTZ, Paula (2009). “World Religions: Baha'i Faith”.
  • COLE, Juan (1982) – “The Concept of Manifestation in the Bahá'í Writings”. Bahá'í Studies, Ottawa, Bahá'í Studies Publications.