O Islã não enxerga a si mesmo teologicamente como uma religião “fundada” na Arábia do século VII por Muhammad, e sim como o final do processo histórico-espiritual de uma continua tradição adâmica, vinda para terra com o primeiro homem, Adão, e passada de profeta em profeta, nação e nação, linhagem e linhagem, até o advento do último Profeta, o árabe Muhammad.

E como uma continuação histórica da sucessão deste apostolado monoteísta que parte de Adão, chega até Abraão, e está entre ele e Muhammad, há o “hanifismo”, o monoteísmo árabe pré islâmico de origem abraâmica.

O hanifismo, por assim dizer, teria surgido em Meca com Ismael, filho de Abrão e Hagar, que não somente foi o Patriarca dos árabes, como também ensinou-lhes o monoteísmo de seu pai. Os seguidores do hanifismo, ou “hanifs”, tomaram um caminho antagônico ao da idolatria do Oriente Médio e do futuro paganismo árabe, mantendo-se como religião monoteísta da qual pouco se sabe, antes mesmo do advento do judaísmo e do cristianismo.

Os hanifs normalmente passavam parte de seu tempo longe do ambiente urbano, fazendo retiros perto das colinas para meditar, contemplar e rezar. A pregrinação à Caaba em Meca, teria começado originalmente com os hanifs abraâmicos, sendo o proprio Abraão o primeiro peregrino. Alguns dizem que um desses lugares de meditação hanif era o proprio monte Hira, onde o Profeta Muhammad mais tarde receberia sua primeira revelação, e ele mesmo mantendo-se hanif (monoteísta abraâmico) antes da revelação do Islã.

Já no Alcorão, o termo hanif aparece doze vezes, como uma designação árabe para os verdadeiros monoteístas que não eram judeus, cristãos ou adoradores dos ídolos, seguindo sua propria linhagem abraâmica. O termo vem da raiz árabe ḥ-n-f que significa “inclinar, declinar”, “virar ou dobrar para os lados” da raiz siríaca com o mesmo significado.

Alguns dos trechos do Alcorão que cita os hanif:

Surah 2:135 (Al-Baqara): “Disseram: Sede judeus ou cristãos que estareis bem iluminados. Responde-lhes: Qual! Seguimos o credo de Abraão, o monoteísta [hanifan], que jamais se contou dentre os idólatras.”

Para ilustrar novamente o termo no Alcorão, vejamos o que diz a Surah 3:67 (Al-i-Imran):

“Abraão jamais foi judeu ou cristão; foi, outrossim, monoteísta [hanifan], muçulmano, e nunca se contou entre os idólatras.”

Desta feita, um hanif era aquele que seguia a linhagem árabe do que fora ensinado por Abraão via Ismael, ao passo que a outra linhagem do monoteísmo seria o transmitido por Isaque, que futuramente seriam a raiz do judaismo e cristianismo. Os componentes essenciais do hanifismo encontrariam-se presentes na propria religião islâmica, sendo a senda reta (sirat ul-mustaqim) da fé muçulmana, que os fiéis acreditam ser o estado natural (fitrah) no qual a humanidade foi criada.

Portanto, ser um hanif implica, necessariamente, em manter essa orientação monoteísta através de toda sua vida, evitando assim todas as formas de politeísmo e idolatria. Durante o período pré-Islâmico, o termo hanif foi utilizado para descrever monoteístas árabes que não aderiam ao politeismo reinante, que fora introduzido na Caaba, templo originalmente monoteísta hanifista erguido por Abraão, com os primeiros ídolos trazidos por Amr ibn Luhay do Levante.

Contudo, pouco antes do advento do Islã, os árabes monoteístas aderentes do hanifismo estavam em numero reduzido na Arábia, que quase já não possuia mais a tradição. Alguns parentes, contemporâneos e seguidores do Profeta Muhammad, além dele mesmo, eram hanifs antes do Islã, tal qual mencionado nas crônicas de Ibn Ishaq, como é o caso do primo de Khadijah, Waraqah ibn Nawfal que primeiro teria identificado Muhammad como Profeta, o poeta Umayyah ibn Abī aṣ-Ṣalt, o avô do Profeta Shaybah ibn Hāshim, também conhecido como Abdul Mutalib, Zayd ibn Amr, Uthman ibn al-Huwayrith, o líder árabe monoteísta pré-islâmico que se converteu ao cristianismo, e Ubayd-Allah ibn Jahsh.

O historiador do cristianismo do século V, Sozomeno (375-447), deixou em seus escritos que no noroeste da Arábia muitos eram familiarizados com a ideia de um “monoteísmo abraâmico”, trazido por Ismael filho de Hagar para os árabes, sendo um dos vestigios históricos não-islâmicos do hanifismo pré-islâmico.

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