Texto de: Guilherme Freitas

No ano 628, o Profeta Muhammad selaria uma trégua com a tribo dos coraixitas que mudaria para sempre a maneira como os muçulmanos realizam seus acordos até os dias de hoje. No presente artigo analisaremos as nuances diplomáticas de tal tratado, demonstrando como o mesmo serviu para garantir a paz entre os muçulmanos e os pagãos de Meca, mesmo as cláusulas sendo totalmente desfavoráveis aos fiéis do Islã.

Contexto Histórico

Em 628, ao se aproximar do período de peregrinação (Hajj) o Profeta se encontrou em um dilema: realizar ou não o ritual sagrado. Ocorre que os muçulmanos e os coraixitas já vinham de um certo histórico de conflitos bélicos, porém o período do Hajj era sagrado na Arábia, deixando também os mequenses na dúvida se deixariam ou não os muçulmanos realizar a peregrinação até Meca.

Embora Muhammad não tivesse qualquer intenção de efetuar uma ofensiva militar, os coraixitas o tinha como inimigo e alguém que não podiam fazer concessões. Entretanto, impedir os muçulmanos de realizar a peregrinação sagrada seria uma afronta aos velhos costumes árabes, manchando assim a imagem do povo de Meca.

Até então sem um plano claramente definido, Muhammad recebeu a solução através de um sonho. Se vendo com a cabeça raspada igual a um peregrino e usando a roupa tradicional de um, se viu em frente à Caaba com a sua chave em mãos. Com o sonho lhe dando a garantia da vitória, mais tarde o mesmo seria confirmado pelo Alcorão Sagrado na Surah Al Fath (O Triunfo; 48:27), dizendo:

“Em verdade, Deus confirmou a visão do Seu Mensageiro: Se Deus quisesse, entraríeis tranquilo, sem temor, na Sagrada Mesquita; uns com os cabelos raspados, outros com os cabelos cortados, sem medo. Ele sabe o que vós ignorais, e vos concedeu, não obstante isso, um triunfo imediato.”

Na manhã seguinte, em março de 628, o Profeta anunciaria sua intenção de realizar a peregrinação. Os muçulmanos se sentiram extremamente alegres com a notícia, afinal é um ritual sagrado e de extrema importância para os mesmos, porém também sentiram medo e ficaram apreensivos, uma vez que a ameaça coraixita ainda existia. Muhammad assegurou que seu objetivo não era militar, mas sim de realizar o ritual sagrado como os demais peregrinos vindos de toda a Arábia.

Devido ao perigo de tamanha empreitada, os aliados beduínos da ummah (comunidade islâmica) se recusaram a participar. Sem portar armas e usando a tradicional vestimenta branca, mil muçulmanos (dentre eles os Emigrantes e Ajudantes) partiram junto com o Profeta para realizar o Hajj.

O Tratado

Quando os coraixitas ouviram a respeito da partida dos peregrinos de Medina, foram tomados pelo receio e pela apreensão, conforme previra o Profeta. Como citado acima, os mequenses se encontravam num terrível dilema: se eles, os guardiões do santuário, evitassem a aproximação de mil peregrinos até a Caaba, isso seria uma séria violação das leis e dos costumes sobre a qual sua própria grandeza e reputação estavam estabelecidas. Entretanto, se deixassem seus inimigos adentrarem o local sagrado, mesmo que desarmados, isso seria um grande triunfo moral para Muhammad, se espalhando rapidamente por toda a Arábia, sendo a “cereja em cima do bolo” da derrota sofrida pelos coraixitas um ano antes (627) na sua tentativa de invadir Medina. Ainda pior, a forma dos muçulmanos realizarem o Hajj poderia atrair os fiéis pagãos para a religião de Muhammad, confirmando o seu elo direto com a fé de Abraão. Os coraixitas não podiam deixar isso ocorrer em hipótese alguma.

Quando os peregrinos chegaram até a localidade de Usfan, foram informados que uma tropa de duzentos cavaleiros havia saído de Meca para intercepta-los, sendo liderada por Khalid ibn al-Walid, um dos mais temíveis guerreiros árabes da região (e futuro maior general muçulmano após sua conversão). Tendo de mudar a rota, o Profeta pediu para que um guia os levasse até o destino através de um caminho diferente, indo em direção à costa e depois por um caminho tortuoso e difícil, chegando assim em Hudaybiyyah, próximo de Meca, nas fronteiras com o Território Sagrado.

Já em Hudaybiyyah, um mequense da tribo de Khuza chamado Budayl al-Khuzai foi até o local junto com outros companheiros de sua tribo para negociar com Muhammad. Foi então que o Profeta disse para al-Khuzai que estavam ali para realizar a peregrinação, e não para combater.

Com esses dizeres, Budayl voltou até Meca para informar aos líderes da cidade quais eram as intenções de Muhammad, porém os mesmos afirmaram que apesar do Profeta não querer um conflito, os mequenses estavam prontos para um. Nessa ocasião podemos ver bem o caráter belicoso da tribo dos Quraysh contra Muhammad e os muçulmanos, uma vez que perseguiram por mais de uma década os fiéis do Islã, chegando a torturar vários adeptos da religião de Allah, e agora se recusavam a aceitar um acordo de paz com um grupo de peregrinos desarmados.

Uma série de negociações tomou conta, com Budayl al-Khuzai indo e voltando de Meca para Hudaybiyyah, até que finalmente um homem chamado Kinana viu que os camelos estavam adornados e preparados para o sacrifício, portanto, pelas normas do santuário da Caaba, os fiéis muçulmanos não poderiam ser mandados embora.

O confederado Taif, Urwah ibn Masud se ofereceu para ser intermediário. O mesmo narra que Suhayl ibn Amr, enviado para negociar com Muhammad, sugeriu que os muçulmanos voltassem para peregrinar no ano seguinte. Naturalmente que os companheiros do Profeta se indignaram com tal proposição, principalmente Omar, porém Abu Bakr o alertou que se mantinha confiante nas decisões do Mensageiro de Deus.

Muhammad aceitou a proposta, apesar das objeções da ummah, chamando um escriba para anotar os termos do presente acordo, que começou com: “Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso”, continuando com “Isso é o que Muhammad, o Mensageiro de Deus concordou.”

Estranhando tais dizeres, Suhayl exigiu que o trecho acima fosse modificado, e assim o Profeta fez, tudo para manter a paz com os coraixitas.

O presente tratado assinado por Muhammad e por Suhayl ibn Amr ficou conhecido como o Tratado de Hudaybiyyah, em que foi acordado que os fiéis muçulmanos deveriam adiar a sua peregrinação para o ano seguinte, data essa em que os coraixitas deveriam sair da cidade por três dias para que os fiéis do Islam pudessem realizar todos os rituais necessários em paz.

Ainda segundo o acordo, um período de paz de dez anos foi estabelecido entre Meca e Medina, com a condição de que Muhammad deveria devolver os coraixitas convertidos ao Islam e que realizaram a hijra (fuga para Medina) sem o consentimento de seus protetores. O Alcorão estipula que os muçulmanos sempre devem concordar com qualquer condição proposta pelo inimigo, se houver chance de trégua. Porém, tais cláusulas pareciam onerosas demais para o lado do Profeta e dos fiéis do Islã.

Narrado por Ibn Ishaq, os companheiros do Profeta estavam convencidos quando souberam de seu sonho antes da peregrinação, porém “quando viram a que o apóstolo se sujeitava, ficaram deprimidos quase a ponto de morrer”.

Vendo mais longe que todos os demais, Muhammad sabia o que fazia. Depois da derrota dos coraixitas no ataque à Medina em 627, o Profeta bem que poderia ter destruído eles militarmente, porém nunca quis isso. Abandonando inclusive o bloqueio econômico, uma vez que antes da trégua os Emigrantes podiam atacar as caravanas coraixitas, Muhammad quis convencer os habitantes de Meca pela paz.

Conclusão

Os métodos pacíficos do Profeta geraram bons frutos para o Islã, como por exemplo o próprio reconhecimento por parte de Meca a respeito de um Estado muçulmano. Não somente, alguns pagãos se converteram, dentre eles Khalid ibn Walid e Amr ibn al-Aas, duas “aquisições” imensas, se colocadas em termos militares.

Ainda como efeito da pax islâmica derivada do Tratado, muitas tribos árabes não hostis vieram a conhecer o Islã e vários de seus membros abraçaram a religião do Profeta. O Tratado ainda permitiu que Muhammad enviasse cartas para os governantes da Pérsia, Bizâncio e Coptas chamando-os para a religião islâmica.

Porém, o mais importante de tudo: o Tratado de Hudaybiyyah levou diretamente para a conquista de Meca, quando os próprios pagãos o violaram, tornando-se o casus belli para a rendição pacifica da cidade as hostes islâmicas por volta de dois anos mais tarde (entre dezembro de 629 e janeiro de 630). Isso tudo devido ao tato político e às habilidades diplomáticas do Profeta, que em sua busca pela paz conseguiu uma conquista até então inimaginável, tendo o seu legado repetido através dos séculos pelos mais variados governantes muçulmanos, desde o grande Saladino até nossos dias.

Bibliografia:

O Alcorão Sagrado. Surah 48.

-LINGS, Martin. Muhammad. His Life Based on the Earliest Sources.

-ARMSTRONG, Karen. Maomé – Uma Biografia do Profeta. 1991

-COLE, Juan.Muhammad. Prophet of Peace Amid the Clash of Empires. 2018.

-KUNG, Hans. Islam. Past, Present & Future. Oneworld Publications. 2007.

-WATT, William Montgomery. Muhammad. Prophet and Statesman.