Hunayn Ibn Ishaq e os grandes cientistas cristãos do Califado Abássida
Autor: Hady Ahmed 16/01/2021Autor: Hady Ahmed
“Procurei por ele com afinco e viajei em busca dele nas terras da Mesopotâmia, Síria, Palestina e Egito até chegar em Alexandria, mas não consegui encontrar nada, exceto a metade em Damasco.”1 Essas são as palavras de Hunayn Ibn Ishaq Al-‘Ibadi sobre a sua extensa e exaustiva busca pelo texto original em grego da obra de Galeno, De Demonstration, o que destaca o porquê esse médico do Oriente Médio se tornou um dos principais eruditos do medievo Islâmico. Hunayn, também conhecido pelo seu nome latino Johannitius, foi um dos principais personagens no grande movimento de traduções das principais obras médicas em grego, como as de Galeno e Hipócrates, para o Árabe – a “lingua franca do Oriente Médio na época. De fato, o renomado acadêmico Max Meyerhof considerou Hunayn como o “maior tradutor de obras do Grego para o Siríaco e o Árabe”2 devido a sua expertise na medicina, seu domínio do Grego e seu elevado padrão de qualidade. Hunayn, mais que qualquer outro erudito do período islâmico medieval, representou a ideia do califa al-Mamum de uma era de ouro islâmica no aprendizado. Suas importantes contribuições para a medicina, particularmente na oftalmologia, e suas influentes traduções de obras Gregas e Persas, como a Ars Medica de Galeno, asseguraram que o antigo conhecimento médico seria aperfeiçoado e preservado para as futuras gerações de médicos e eruditos. Textos médicos de sua autoria se tornaram os guias padrões para revisão nas escolas médicas tanto do mundo Islâmico quanto na Europa Ocidental. Ele também foi fundamental para tornar a língua árabe em uma língua da ciência através da criação de um novo léxico árabe que poderia transmitir o conhecimento médico helênico para os estudiosos do império Abássida.
‘Abu Zaid Hunayn Ibn Ishaq Al-‘Ibadi foi um cristão nascido na cidade de al-Hira3, localizada próxima da moderna cidade de Najaf no Iraque. Descendendo da tribo árabe de Al-‘Ibad, como demonstra seu nisba, Al-‘Ibadi, ele fazia parte da Igreja Siríaca Nestoriana. Seu pai, Ishaq, era um farmacêutico em Hira. Essa cidade Mesopotâmica, justaposta entre três grandes forças culturais, Árabe, Assíria e Persa, se tornou proeminente na era pré-Islâmica durante a dinastia Lakhmida3. Hira teve um papel de grande importância na educação de Hunayn e sua maestria do Árabe, Siríaco e Persa, línguas que eram a fundação de seus empreendimentos acadêmicos. Hunayn teria aprendido a língua Siríaca dos cristãos nestorianos durante sua juventude, juntamente com o árabe, língua de sua tribo. O Persa, língua erudita que os homens letrados de Hira estudavam, seria – assim como o Grego – uma língua que Hunayn teria aprendido posteriormente em sua vida.4
Hunayn teve seu treinamento médico com Abu Zakariya Yuhanna ibn Massawayh, um famoso médico que morava em Bagdá. Oriundo de Gondishapur na região oeste do Irã, Yuhanna ibn Massawayh havia se mudado para Bagdá onde se tornou médico na corte do califa.5 Como médico e escritor sobre medicina de assuntos como febres, dietética, depressão e oftalmologia, Yuhanna forneceria a Hunayn uma excelente educação médica. Entretanto, o relacionamento entre o médico da corte e o pupilo questionador se tornou tensa justamente devido à natureza questionadora de Hunayn. Isso resultou em Yuhanna o repreendendo e o dispensando como seu aluno, dizendo:
“O que faz as pessoas de Hira querer estudar medicina? Vá embora e ache seus amigos: ele irá lhe emprestar 50 dirhems. Compre algumas cestinhas por um dirhem, um pouco de arsênico por três dirhems e com o resto compre moedas de Kufa e de Qadisiyya. Cubra o dinheiro de Qadisyya com arsênico e coloque-o nas cestas e fique à beira da estrada gritando: “Aqui está o dinheiro de verdade, bom para dar esmolas e para gastar…” Venda as moedas; isso vai te render muito mais do que a ciência da medicina.”6
Este episódio na vida de Hunayn foi um acontecimento decisivo que o levou a deixar Bagdá, determinado a continuar sua busca pela medicina. Como a maior parte da literatura médica da época era em grego, ele focou em dominar o idioma. Fonte indicam que Hunayn ou passou um tempo em Alexandria, centro de aprendizagem do Grego, ou em Bilad-al-Rum, Bizâncio. Ele voltou a Bagdá durante o reinado do califa abássida al-Ma’mum. Sucedendo seu pai Harun al-Rashid como o sétimo califa da dinastia Abássida, Abu Jafar al-Ma’mum ibn Harun, queria a “habilidade e sabedoria dos antigos”7 para servir de fundação da nova era de aprendizado e ciência de seu império. Para concretizar seu plano de tornar Bagdá, a capital de seu império, em um centro de aprendizagem, al-Mamum enviou emissários culturais para adquirir manuscritos científicos tanto de seus territórios e além.
Impressionado pela sua maestria no idioma grego, Gibrail ibn Bukhtishu’, o médico da corte do califa, encarregou Hunayn de traduzir os manuscritos médicos helênicos que haviam sido levados para Bagdá pelos emissários do califa. Essas primeiras comissões foram o começo de um glorioso capítulo da história da medicina no período medieval islâmico, uma vez que Hunayn chegou em um período de erudição até então sem paralelos no mundo islâmico.
A reputação de Hunayn como erudito e tradutor dependia de dois elementos cruciais. Primeiramente, suas traduções das obras gregas tanto para o Siríaco quanto para o Árabe eram superiores às traduções anteriores devido à sua grande maestria dos idiomas e a sua criação de um novo lexicográfico árabe. Gotthelf Bergsträsser em um estudo sobre as técnicas de tradução de Hunayn diz:
“A precisão é superior; não obstante, fica-se com a impressão de que não é o resultado de um trabalho ansioso, mas de um domínio livre e seguro da língua. Isso é visto na adaptação mais fácil ao original grego e na notável exatidão de expressão obtida sem verbosidade. É tudo isso que constitui a famosa fasaha (eloquência) de Hunain.”1
Seu desejo de traduzir o texto grego em siríaco e árabe sem perder a essência do texto original exigia que Hunayn desenvolvesse um novo vocabulário médico árabe. Hunayn destaca o problema ao afirmar que o árabe não tinha muitas das palavras para medicamentos e instrumentos médicos que existiam em persa, grego ou siríaco8. Como ele optou por traduzir ao invés de transliterar os termos médicos, ele tinha que formar essa nova terminologia árabe para converter as expressões medicas gregas precisamente. Sua criação desse novo léxico médico no árabe tornou Hunayn “fundamental para desenvolver o árabe em uma língua internacional formidável para a ciência”9 durante essa era de ouro de estudos no Oriente Médio. Através de seu domínio e compreensão dos idiomas grego e árabe, como demonstrado em seus trabalhos filológicos de gramática e vocabulário, como o Kitab fil-nahw (Livro de Gramática), Hunayn foi capaz de transformar o conhecimento médico helênico em uma eloquente e precisa adaptação árabe. Hunayn iria também revisar suas próprias traduções posteriormente em sua vida conforme seu conhecimento e técnicas médicas evoluíram ou se um novo manuscrito viesse a esclarecer um texto já existente. Comentando sobre sua tradução de um texto de Galeno, ele disse:
“Eu o traduzi quando era jovem … de um manuscrito grego muito defeituoso. Mais tarde, quando eu tinha 46 anos, meu aluno Hubasish me pediu para corrigi-lo após ter coletado um certo número de manuscritos gregos. Em seguida, comparei-os com o texto siríaco para assim corrigi-los em todo o meu trabalho de tradução ”.1
Hunayn iria traduzir as obras helênicas tanto para o árabe quanto para o siríaco com seu sobrinho Hubaysh e seu filho Ishaq, que se tornariam tradutores notáveis. O foco acadêmico em Hunayn é com base em suas traduções árabes, uma vez que suas obras em siríaco – que formavam uma grande parte de seu trabalho – não sobreviveram.
A metodologia exigente de tradução de Hunayn, sua contribuição para a lexicologia árabe, assim como o grande volume de obras que traduziu tanto para o siríaco quanto para o árabe seriam suficientes para concretizar sua reputação como um erudito extraordinário. Hunayn, entretanto, também escreveu suas próprias obras médicas originais e construiu sua própria reputação como médico, oftalmologista e a sua criação de um de um currículo médico árabe constitui o segundo elemento de sua reputação inigualável.
Seu Kitab al ‘Ashar Maqalat fi ‘I ‘ayn (Dez Tratados sobre o Olho), “o mais antigo livro didático sistêmico de oftalmologia”10, e seus dois manuais médicos, Masa’il fi al-tibb (Questões sobre Medicina) e Masa’il fi al-‘ayn (Questões sobre o Olho”, foram fundamentais para consolidar a reputação de Hunayn como um contribuinte original para a teoria médica tanto no Oriente Médio quanto posteriormente na Europa Ocidental.
Devido a maneira que ele classificou sua teoria médica e os supracitados tratados, Hunayn estabeleceu um efetivo programa de estudos estruturado para estudiosos de medicina.11 Como Maria Chicco diz: “Os manuais de Hunayn representam um grande avanço em direção a classificação [com] algumas de suas respostas [sendo] memoráveis para sua precisão descritiva e apresentação clara.”12 Originalmente escritos para seus filhos e sobrinhos, esses manuais se tornaram ferramentas indispensáveis para os estudantes de medicina, conforme atestado por cópias manuscritas que contêm cópias de resultados de exames bem-sucedidos com base nas obras de Hunayn. Como textos médicos padrão no mundo islâmico, suas obras foram traduzidas para o latim com seu Masa’il fi al-tibb traduzido como ‘Isagoge Johannitii ad parvum artem Galeni’ e seu Kitab al ‘Ashar Maqalat fi’ l ‘ayn como Galeni Liber de Oculis translatus a Demetrio. Essas traduções latinas tornaram-se parte do currículo de ensino nas escolas médicas europeias em Paris, Bolonha e Pádua.12
Em reconhecimento a seu conhecimento e sabedoria, Hunayn foi nomeado médico da corte pelo califa al-Mutawakkil, o cargo de maior prestígio que um acadêmico de medicina poderia ocupar. Um estudioso respeitado, um linguista talentoso e um professor estimado, Hunayn Ibn Ishaq representou o tipo de estudioso que era predominante durante o período islâmico medieval. Um cristão árabe fluente na língua dos antigos, moldando a ascensão de uma era de ouro da aprendizagem islâmica em uma nova língua científica – o árabe – mostra a complexidade, diversidade e riqueza dessa era na história do Oriente Médio. Hunayn não apenas preservou o conhecimento dos antigos, mas o enriqueceu, classificou e lançou as bases para um dos maiores períodos de estudos científicos e médicos que o mundo já viu. Ele sintetizou a noção de um “estudioso internacional” dominando o grego em suas viagens, coletando manuscritos em terras distantes antes de escrever um vasto volume de obras que lhe trouxe as maiores honras do império abássida. Tido em alta estima durante sua vida no Oriente Médio e séculos depois na Europa Ocidental, ele estabeleceu uma referência para os estudos que durou séculos após sua morte. Linguista, filósofo, professor e médico, Hunayn Ibn-Ishaq foi uma figura importante na formação de nosso conhecimento médico de hoje.
Referências
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