Dentro da história islâmica, a figura feminina sempre foi de muita importância tanto nas questões religiosas quanto políticas; por vezes foi em ambos os casos, como no exemplo de Aisha, esposa do Profeta Muhammad.

Na realidade islâmica, muitas mulheres tiveram papel de grande proeminência na vida pública, não sendo limitadas ao ambiente doméstico. Esses fatos históricos por vezes são difíceis de imaginar em uma sociedade regida sob o Islã, principalmente devido aos estereótipos extremamente frequentes que retratam a mulher muçulmana como oprimida nos veículos de mídia ocidentais, sendo vista como eternamente submissa e praticamente incapaz. Não obstante, muitas vezes o próprio (nominalmente) mundo islâmico contribui para tal imagem, mas somente nos locais com uma grande influência do período conhecido como Jahiliyyah ou ainda devido ao fato de tais países serem governados por seitas, que por vezes adotam uma abordagem totalmente estreitas das fontes islâmicas, caindo em práticas, crenças e doutrinas que vão totalmente de encontro com a prática muçulmana dos últimos 1400 anos. Exemplo disso é a (já revogada) proibição de mulheres dirigir na Arábia Saudita, totalmente sem nexo com a história islâmica, uma vez que a própria Aisha teria liderado um exército em cima de um camelo.

Indo mais além, houve um período do Império Otomano conhecido como o “Sultanato das Mulheres”, que marcou uma época de especial influência das mulheres na corte otomana, fossem elas esposas ou mães de figuras proeminentes do Estado, como no caso de Hurrem Sultana, esposa do lendário Suleiman, o Magnífico.

Nascida provavelmente na Rutênia por volta de 1501-1506, seu nome “original” é desconhecido, porém ficou conhecida entre os otomanos como Hurrem Sultana.1 Durante o reinado de Selim I, isto é, entre 1512-1520, os tártaros da Criméia a sequestraram durante um de seus ataques na Europa Oriental. É provável que os tártaros a tenham levado primeiro para a cidade de Kaffa, na Crimeia, um importante centro do comércio de escravos otomano, antes de ela ser levada para Istambul.

Já em Istambul, Hafsa Sultana, esposa de Selim I, escolheu Hurrem como um presente para seu filho, Suleiman. Hurrem mais tarde conseguiu se tornar Haseki Sultana, ou a “concubina favorita” do harém imperial otomano.

A ascensão de Hurrem como concubina do harém otomano para esposa de um sultão foi sem precedentes. Os sultões não costumavam se casar oficialmente com concubinas até então, que, apesar de ter um status de grande importância no harém real, não eram ”esposas” no sentido literal. Quando Suleiman se tornou sultão em 1520, logo Hurrem se tornou sua concubina oficial, e no período de cerca de 5 anos os dois já estavam casados e com 5 filhos.2

Sua rápida escalada social na corte otomana gerou invejas e rivalidades contra sua pessoa. Isso foi devido não somente ao fato de que a mesma havia ascendido da posição de concubina para esposa em uma maneira até então sem precedentes na corte, mas também pela violação do “princípio” existente de “uma mãe concubina, um filho”. Tal princípio procurava regular e evitar eventuais influências das concubinas e seus filhos sobre os governantes otomanos, ou ainda eventuais brigas hereditárias pela sucessão da dinastia. Diante disso, uma das rivais de Hurrem Sultana foi justamente outra companheira do sultão, Mahidevran, que agora havia sido “destronada” do posto de mãe do único filho de Suleiman. A briga entre as duas seria suprimida ao máximo pela mãe de Suleiman, Hafsa Sultana, que não demoraria muito a falecer, morrendo em 1534.

Por volta de 1533-34 ocorreria o casamento entre os dois com uma cerimônia de grande pompa3. A ascensão de Hurrem não só surpreendeu as rivais concubinas da mesma, mas os súditos da Dinastia, afinal de contas nunca antes uma concubina havia sido elevada à esposa do sultão. Não somente, mas Hurrem foi a primeira a receber também o título de Haseki Sultana. Esse título, usado por um século, refletia o grande poder das consortes imperiais (a maioria delas eram ex-escravas) na corte otomana, elevando seu status acima do das princesas otomanas e tornando-as iguais às imperatrizes consortes na Europa. No que diz respeito à terminologia “sultana” é interessante observar o que diz Leslie Peirce (1993):

No tratamento formal, os filhos do sultão também eram intitulados de “Sultão”, com príncipes, como seu pai, carregando o título antes de seu nome de batismo, e princesas carregando-o depois: por exemplo, Sultão Mehmed e Mihrimah Sultana, irmão e irmã, filhos de Suleiman, o Magnífico. Como princesas, a mãe do sultão, bem como as concubinas favoritas, também carregavam o título após seus nomes próprios: por exemplo, Hafsa Sultana, mãe de Suleiman, e Hurrem Sultana, a concubina mais querida de Suleiman e mãe de Mehmed e Mihrimah. A evolução do uso deste título refletia mudanças de poder entre as mulheres reais, especialmente entre as gerações femininas: conforme a posição de concubina favorita erodiu ao longo do século XVII, as concubinas perderam o título de “sultana”, que foi substituído por kadın, um título relacionado ao khatun de antes. A partir de então, a mãe do sultão reinante foi a única mulher de sangue não real a carregar o título de “sultana”.

Diante da prática do fratricídio na corte otomana, a posição das mulheres (mães, esposas) teria se tornado cada vez mais dependente dos homens do reino. Entretanto, essa situação viria a mudar por volta do começo do século XVI com dois acontecimentos principais: o fim da expansão otomana e o surgimento do harém imperial no palácio propriamente dito. Durante o reinado de Suleiman, o Magnífico, ficou claro que o império havia atingido seus limites externos, com fronteiras se estendendo por milhares de quilômetros em quase todas as direções. O sultão simplesmente não podia mais se dar ao luxo de continuar em longas campanhas militares, especialmente após o Cerco de Viena.

Foi nesse contexto que os haréns passaram a ter um papel emergente na esfera política dentro do palácio. Antes do Sultanato das Mulheres, o sultão não se casava, mas tinha um harém de concubinas que lhe davam seus herdeiros, com cada concubina produzindo apenas um filho, como anteriormente dito, e indo junto com seu filho para as províncias que eram designados para liderar ao invés de permanecer em Istambul. Mas, como evidenciado no que já foi dito sobre Roxelana, conhecida entre os otomanos como Hurrem Sultana, isso viria a mudar.

Ela se envolveu principalmente com a filantropia, particularmente na construção de espaços comuns onde os sujeitos poderiam passar o tempo. O mais proeminente foi o Complexo Haseki Sultana em Istambul, incluindo um centro médico feminino, escola, mesquita e ações filantrópicas para alimentar os famintos, vendo seu começo ainda na década de 1530.

As concubinas não deviam voltar para Istambul, como ficou subtendido acima a respeito das mães acompanharem seus filhos para as províncias em que eram designados. Entretanto, mais uma vez Hurrem Sultana seria a exceção. Desafiando esse antigo costume, Hurrem ficou para trás no harém, mesmo depois que seus filhos foram governar as províncias remotas do império.

Além disso, permanecendo em Istambul, ela se mudou permanentemente do harém localizado no Antigo Palácio (Eski Saray) e para o Palácio Topkapi depois que um incêndio destruiu o antigo harém. Algumas fontes dizem que ela se mudou para Topkapi, não por causa do incêndio, mas como resultado de seu casamento com Suleiman. De qualquer forma, essa foi outra ruptura significativa com os costumes da corte otomana, já que o Sultão Mehmed II havia emitido especificamente um decreto no sentido de que nenhuma mulher seria autorizada a residir no mesmo prédio onde os assuntos do governo eram conduzidos.

Como previsto por Mehmed II, a presença das esposas dos sultões no mesmo local onde os assuntos governamentais eram tratados poderia misturar questões pessoais com questões de Estado. De fato, por um tempo ocorreu alguns boatos de que Suleiman teve sua autonomia limitada e era dominado por sua esposa. Haviam outros rumores ainda sobre a relação do casal real, como o fato do sultão ter sido enfeitiçado, isso porque Hurrem tornou-se companheira de Suleiman não apenas no âmbito privado, mas também nos assuntos de estado. Graças à sua inteligência, ela atuou como a principal conselheira de Suleiman em questões de estado e parece ter tido influência na política externa e na política internacional. Ela frequentemente o acompanhava como conselheira política também.

Exemplo de sua atuação na política internacional é justamente com suas cartas ao rei polonês Sigismundo II. É curioso também observar que em sua época, as relações com a Polônia foram pacíficas, ocorrendo inclusive uma aliança entre o Estado polonês e o Império Otomano.

Porém, sua influência no estado otomano também foi alvo de controvérsias, isso devido principalmente à rivalidade anteriormente mencionada com Mahidevran, juntamente com seu filho Şehzade Mustafa, e os grão-vizires Pargalı Ibrahim Pasha e Kara Ahmed Pasha.

Dentre os problemas que Hurrem teve com Mahidrevan, podem ser resumidos na questão da linha sucessória ao trono do sultanato. Isso se deve ao fato de que o filho de Mahidevran era mais velho que os filhos de Hurrem, ou seja, “tecnicamente” ele tinha o direito ao trono após a morte de Suleiman.

Isso porque não havia uma regra de sucessão para os otomanos dentro do quadro da antiga tradição política turca. Ao completar 12 anos, cada shahzade4 era enviado para um “sanjak” (divisões administrativas do Império) a uma distância igual da capital. Eles passavam um período de treinamento e o shahzade que chegasse à capital primeiro tornaria-se sultão após a morte de seu pai.

Durante os primeiros séculos, os membros da dinastia tornaram-se um problema para o Estado sob o domínio de quase todos os sultões. Os shahzades (filhos do sultão, príncipes), que reivindicavam o trono se rebelavam por serem apoiados por outros estados anatólios ou até os bizantinos. Por conta disso, tradicionalmente, quando um novo sultão chegava ao poder, todos os seus irmãos eram mortos para garantir a estabilidade do império. Essa prática é chamada de kardeş katliamı.

Em sua carta ao filho de Timur, o sultão Mehmed I, o quarto sultão dos otomanos, disse:

Meus antepassados trataram alguns inconvenientes com sua experiência. Dois sultões não podem viver no mesmo país.

Por decorrência disso, o Sultão Mehmed II declarou seu famoso tratado jurídico, a Lei de Governança do Conquistador, que afirma que:

Qualquer um dos meus filhos que ascender ao trono, é aceitável que ele mate seus irmãos para o benefício comum do povo (nizam-i alem).

Mustafa, filho de Mahidrevan, tinha o apoio de Ibrahim Pasha, que se tornou grão-vizir de Suleiman em 1523. Hurrem geralmente foi considerada pelo menos parcialmente responsável pelas intrigas na nomeação de um sucessor. Embora fosse esposa de Suleiman, ela não exerceu nenhum papel público oficial, limitando suas influências mais no sentido de “fazer a cabeça” do marido do que um cargo público em que de fato exercia alguma autoridade legalmente reconhecida sobre o Império. Isso, pelo que parece óbvio, não impediu Hurrem de exercer uma poderosa influência política. Como o império carecia, até o reinado de Ahmed I (1603-1617), de qualquer meio formal de nomear um sucessor (citado acima), as sucessões geralmente envolviam a morte de príncipes rivais para evitar distúrbios civis e rebeliões. Na tentativa de evitar a execução de seus filhos, Hurrem usou sua influência para eliminar aqueles que apoiaram a ascensão de Mustafa ao trono.

Apesar de ser um um habilidoso comandante do exército de Suleiman, Ibrahim acabou caindo em desgraça após uma imprudência cometida durante uma campanha contra o Império Safávida persa durante a Guerra Otomano-Safávida (1532-1555). Não bastasse a oposição de Hurrem contra ele para proteger seus filhos de serem executados, podemos agora somar o erro do comandante durante a guerra contra os Safávidas quando ele se nomeou “Sultão”, um ato que pode ser claramente interpretado como prepotente e precipitado demais. Porém a coisas não param por aí: outras desavenças viriam a ocorrer quando Ibrahim e seu antigo mentor, İskender Çelebi, entraram em confronto diversas vezes por causa da liderança militar e de posições também durante a guerra Safávida. Esses incidentes lançaram uma série de eventos que culminaram em sua execução em 1536 por ordem de Suleiman. Naturalmente que é provável que a influência de Hurrem sobre seu marido tenha contribuído para a execução de Ibrahim, afinal, após isso (e depois de três grão-vizires), seria a vez do genro de Hurrem, Damat Rüstem Pasha, marido de Mihrimah (única filha do casal real), a ocupar o cargo.

Contudo, essas histórias não podem ser encontradas em fontes primárias, mas sim em narrativas posteriores, tanto de historiadores quanto de especuladores. De qualquer forma, o legado de Hurrem Sultana é claro: marcou de fato uma mudança de paradigmas em um dos maiores impérios de todos os tempos, conseguindo mudar a organização tradicional otomana simplesmente por existir e ser quem foi, não sendo à toa que é lembrada e motivo de inspiração para obras de arte, musicais, tragédias, operas e assim por diante. Hurrem faleceu em 1558, e, atingiu seu objetivos quando um de seus filhos, Selim, futuro Selim II, sucedeu seu marido o sultão Suleiman.

Notas

[1] Muito embora seu nome de batismo seja desconhecido, há teorias de que tenha sido Anastásia ou Alexandra.

[2] Şehzade Mehmed; Mihrimah Sultão; Şehzade Abdullah; Sultão Selim II e Şehzade Bayezid.

[3] Nesse caso, Suleiman não apenas quebrou o antigo costume otomano, mas deu início a um novo: casar em uma cerimônia formal e dar aos seus cônjuges uma influência significativa na corte, especialmente em questões de sucessão.

[4] Os descendentes masculinos do sultão.

Bibliografia

PEIRCE, Leslie P. THE IMPERIAL HAREM: Women and Sovereignty in the Ottoman Empire. Oxford University Press, 1993.

LEVIN, Carole. Extraordinary women of the Medieval and Renaissance world: a biographical dictionary. Greenwood Press, 2011.

IMBER, Colin. The Ottoman Empire, 1300–1650 : The Structure of Power. Palgrave Macmillan, 2002.

SMITH, Bonnie G., ed. “Hürrem, Sultan”. The Oxford Encyclopedia of Women in World History. Oxford University, 2018.