A África Ocidental é uma terra rica não apenas em recursos, mas também todos os tipos de diversidades regionais: étnica, cultural, religiosa e, inclusive, histórica. Tendo sido lar de diversos impérios e de milhares de tribos, cada qual com suas particularidades, ela foi aos poucos sendo alcançada pela religião do Islã, que gradualmente foi penetrando nas tribos e nos corações dos africanos da região. Como não poderia ser diferente, essa diversidade regional levou ao surgimento de uma ainda maior, relativa ao ambiente, que foi o surgimento de diversos movimentos islâmicos com abordagens distintas (por vezes opostas e conflitantes) sobre os mesmos tempos.

Um desses curiosos movimentos foi o dos Suwaris, que se tornou tão importante que se desenvolveu de maneira a funcionar como uma madhab (ou ‘escola’) de jurisprudência islâmica, embora estivesse subordinada e inserida na madhab Maliki, trazida há pouco pelos berberes. Esse movimento foi fundado pelo renomado e misterioso Sheykh al-Hajj Salim Suwari, que é dito ter vivido em meados do século XV. Muito pouco se sabe sobre sua vida, de modo que não se sabe nem exatamente quando ele viveu, seu nascimento ou sua morte, com estimativas apontando para o começo do século XV. O que nos chega até hoje é que era originário do povo soninke (ou serakhulle), cuja família era de emigrantes que se mudaram da localidade de Massina para Jagaba e Dia, num dos afluentes do Rio Senegal.

Todavia, para melhor compreendermos a mensagem de Sheykh Suwari e seu impacto, precisamos primeiro ter um vislumbre da sociedade na qual ele estava inserido. Àquela época, várias tribos e pequenos reinos despontavam e disputavam tanto território quanto as famosas minas de ouro e rotas comerciais do Alto Volta, Mali e Senegal. O Islã havia sido introduzido por aquelas terras não fazia muito tempo, mas diferentemente das regiões acima do Saara, no Magrebe, ele não havia feito muito sucesso além dos centros populacionais e das classes nobre e mercantil, que viram na nova religião um jeito de centralizar mais seu poder e aumentar seus contatos e renda comerciais, respectivamente. Contudo, mesmo essas conversões não foram lá muito zelosas, uma vez que os conversos – sejam eles nobres ou comerciantes, ou mesmo camponeses –, continuaram praticando muitos dos velhos ritos das religiões politeístas do local, tais como divinação por oráculos e cerimônias de cunho social e régio. Apesar disso, gradativamente o Islã ia se espalhando pela população, e a chegada de novos jurisconsultos e mestres sufis, geralmente trazidos pelos reis após a efetuação de seu Hajj a Meca, ajudavam a dar contornos mais ortodoxos à religiosidade local.

Os soberanos convertidos do Império Mali (1226 – 1670) foram os pioneiros não só na conversão ao Islã como no recebimento de juristas malikitas que ajudaram a estabelecer o Islã na região. É nesse contexto de efervescência de um Islã intelectual regional e mais ortodoxo, culto, que Sheykh Suwari começa a fazer sua história. Segundo alguns, a primeira residência de Sheykh Suwari foi a cidade de Dia, chamada por muitos de “cidade de juristas” por ser um polo emergente do ensino e aprendizado da jurisprudência islâmica malikita e, ao mesmo tempo, sendo também uma "cidade de feiticeiros", refletindo a presença de homens de saber também do politeísmo local, mostrando a importância dessa localidade tanto para um credo quanto para o outro. É possível que essa convivência primeva o tenha ajudado a formular suas ideias posteriores sobre tolerância e coexistência.

O fato é que os temas de tolerância para com os kaffir, ou “infiéis” pagãos não são estranhos à tradição malikita da religião anterior à Sheykh Suwari: o assunto não escapou, ao que parece, à atenção do Imam Malik ibn Anas (710-79), fundador da madhab que leva seu nome. Uma fatwa (parecer legal) atribuída a ele foi registrada pelo jurista norte-africano, 'Abd al-Salam Sahnun de Qayrawan (falecido em 854), autor de uma obra altamente conceituada sobre os ensinamentos do Imam Malik. A fatwa em questão dizia respeito à atitude correta a ser tomada em relação aos não-crentes no norte do Saara (no caso, os berberes, recém-assimilados ao Dar ul-Islam, o Mundo Islâmico). Foi no sentido de que a guerra não deveria ser travada contra eles até que tivessem recebido, primeiro, a oportunidade de se converter, e se esta fosse recusada, em segundo lugar, de pagar um imposto – a jizya – a fim de poder manter seus próprios costumes religiosos.

Sheykh Salim Suwari viajou extensivamente pela região (que era chamada de “Sudão Ocidental”, em oposição ao Sudão Oriental, que é onde se encontra o atual Sudão) propagando suas interpretações dos escritos de Maliki até que, como diz a tradução de um dos narradores de sua vida:

"Ele conseguiu os bons frutos do que fez entre os 'ulama de Massina, de modo que a liderança [dos juristas] veio eventualmente para ele [...] Ele prestou grandes serviços ao Islã. Ele dedicou um turbante especial [burnus] para ser usado apenas por aqueles que completaram seu estudo de al-Tafsir, al-Shifa e al-Muwatta. Ele fez o contrato de casamento incluir critério a mais, uma condição para evitar que os casais brigassem. Ele dedicou outro turbante para aqueles que dominavam os ensinamentos de Maliki e um bastão para aqueles que se tornaram bem versados nos fundamentos da jurisprudência islâmica."

Mas o principal ensinamento de Sheykh Salim Suwari era de que os muçulmanos não tinham o direito de empregar a jihad a não ser quando a segurança de suas comunidades estivesse sendo ameaçada. Sheikh Suwari formulou as obrigações das minorias dyula que residem na África Ocidental em uma gama de ensinamentos e interpretações legais que foi mais tarde apelidada de Tradição Suwariana, uma tradição legal própria dentro do próprio Malikismo. Ele enfatizou a necessidade de os muçulmanos coexistirem pacificamente com os não-muçulmanos e, assim, justificou a separação entre religião e da política. A prescrição suwariana para a coexistência pacífica envolvia sete preceitos principais:

  • Os incrédulos são ignorantes, não perversos, muito menos pecadores. Ou seja, eles não têm culpa alguma de serem pagãos, e devem ser respeitados em suas religiões.
  • É desígnio de Alá que algumas pessoas permaneçam ignorantes por mais tempo do que outras.
  • Os muçulmanos devem nutrir seu próprio aprendizado e piedade e, assim, dar bons exemplos aos não-muçulmanos ao seu redor, para que saibam como se comportar quando se converterem.
  • Poderiam aceitar a jurisdição de autoridades não-muçulmanas, desde que tivessem a proteção e condições necessárias para praticar a fé de acordo com a Sunnah do Profeta Muhammad (sas). Neste ensinamento, Suwari seguiu uma forte predileção na filosofia política islâmica por qualquer governo, embora não-muçulmano ou tirânico, em oposição a nenhum.
  • A jihad militar era um recurso apenas em caso de autodefesa se os fiéis fossem ameaçados.
  • Suwari desencorajou a dawah (proselitismo), em vez disso, argumentou que Allah (swt) traria não-muçulmanos ao Islã à Sua própria maneira; não era responsabilidade do muçulmano decidir quando a ignorância deveria dar lugar à crença. A única forma de proselitismo deveria ser o bom exemplo de comportamento dos muçulmanos, suas boas palavras e boas ações.
  • Os muçulmanos devem garantir que, por seu compromisso com a educação e o aprendizado, mantenham a observância da Lei livre de erros.

É sabido num estudo recente [1] que as longas cadeias de professores registradas nos assim chamados isnads poderiam ser usadas para rastrear a disseminação do aprendizado sunita por uma parte considerável da África Ocidental. Mais significativamente, no entanto, com uma única exceção, todas as 30 ou mais cadeias convergiram, por muitas rotas diferentes, em al-Hajj Salim Suwari, corroborando sua importância mais que indelével e significativa no estabelecimento e na disseminação do Islã e sua norma culta pela região. Seus ensinamentos foram fincados no Islã da região e ditaram a norma para o relacionamento interreligioso por lá, ajudando também, na propagação do Islã.

Alguns dizem que Sheykh Suwari fez o Hajj nada menos que sete vezes, daí seu epíteto "al-Hajj", que é concedido a indivíduos que realizam esta sagrada peregrinação a Meca. Até hoje, os muçulmanos do Burkina Faso e Mali carregam consigo, muitas vezes, livros de Sheykh Suwari e seu isnad malikita, para conferir-lhes proteção em viagens e peregrinações e também como forma de atração de sua bênção (baraka).

As políticas de boa convivência renderam frutos para seus seguidores malineses, que por volta de 1445, entraram em relações comerciais lucrativas com comerciantes portugueses que tinham acabado de chegar à região. Apesar de dar bons frutos, os ensinamentos e posições de Sheykh Suwari contavam com cada vez mais oposição de setores conservadores da escola malikita e da região, setores esses eu no futuro seriam responsáveis pela onda de “reformismo” que iria agitar a região em várias jihads belicosas.

Um desses opositores foi Muhammad al-Maghilli, um clérigo de origem berbere conhecido por seu antissemitismo virulento e seu desprezo para com os não-muçulmanos. Responsável por incitar e sancionar perseguições contra a comunidade judaica do interior da Argélia, al-Maghilli era conhecido por seu puritanismo e radicalismo tratando-se de kaffirs, e via na atitude condescendente dos Suwaris para com eles um sinal de fraqueza – senão de heresia –. Para al-Maghilli, que era membro da mesma escola que Suwari, era proibido para os muçulmanos fazerem negócios com descrentes, e a jihad como método de conversão e expansão do Islã não era apenas permitida, mas desejada.

Apesar de, em último caso, as correntes mais conservadoras e fundamentalistas terem conseguido ganhar terreno nas políticas da região, especialmente após a queda do Império do Mali no século XVII, o legado de Sheykh permaneceu – e permanece – vivo e presente, em sua ideologia pacifista e suas práticas exemplares, ainda que hoje em dia, quase todos no entorno da região sejam muçulmanos (ou cristãos), raramente politeístas ou retentores de práticas ancestrais animistas. O povo jakhanke também traça sua ancestralidade espiritual para al-Hajj Salim Suwari, e como eles acreditavam que os espíritos dos santos mortos guardavam seus seguidores e intercediam por eles diante de Alá, os túmulos de Sheykh Suwari e outros grandes mestres são centros para peregrinação (ziyarat).

Bibliografia:

  • ROBINSON, David (2004) Muslim Societies in African History.
  • LAUNEY, Robert (1992) "Beyond the Stream: Islam & Society in a West African Town", University of California Press, Berkeley.
  • [1] WILKS, Ivor (2011) Al-Hajj Salim Suwari And The Suwarians: A Search For Sources. Historical Society of Ghana.