A saga literária de ficção científica “Duna”, do americano Frank Herbert, é sem dúvida um dos mais interessantes e diversos universos já criados na mente de um autor. Ambientado num universo milhares de anos à frente do “hoje”, Dune é fortemente influenciado pela cultura e pela religião do Oriente Médio - o Islã -, desde questões linguísticas e terminológicas até a construção de personagens, povos e religiões inteiras.

No caso dos personagens, Herbert parece ter se inspirado em diferentes figuras da história que, no plot de Duna, antagonizam com um inimigo fictício que muitas vezes é também inspirado nos antagonistas reais dessa mesma personalidade histórica. Um desses personagens - exemplo perfeito disso -  é Paul Atreides, um dos personagens principais da obra e que é frequentemente comparado ao Imam Shamil, um líder checheno do século XIX que liderou uma resistência contra o Império Russo.Os inimigos dos Atreides, os Harkonnen, por sua vez parecem ser inspirados em várias de suas facetas nos russos, combatidos ferozmente por Shamil com táticas de guerrilha.

Frank Herbert era um jornalista e escritor interessado em política e história, e em suas pesquisas para "Duna", ele estudou a história da resistência chechena e, especificamente, a figura única e pávida de Imam Shamil. Sua principal fonte foi o relato biográfico de Shamil denominado “Os Sabres do Paraíso” (The Sabers of Paradise), escrito em 1960 pela autora britânica Lesley Blanch. Todavia, quem foi Imam Shamil? Qual a semelhança que de fato há entre esse relativamente desconhecido líder guerrilheiro e o protagonista da obra de Herbert?

Nascido em 1797 em uma família muçulmana de origem ávara na pequena aldeia (aoul) de Gimry, no atual Daguestão, na Rússia, ele foi originalmente chamado de Ali, mas seguindo a tradição local, seu nome foi mudado quando ele ficou doente. Seu pai, Dengau, era proprietário de terras, o que lhe permitiu alcançar uma boa educação religiosa, que lhe rendeu estudos da disciplina da lógica e do árabe.

Shamil cresceu numa época em que o Império Russo estava se expandindo pela região do Cáucaso a despeito dos Impérios Otomano e da Pérsia - ambos muçulmanos -. Muitos povos caucasianos, que à época já haviam se islamizado, se uniram em resistência às aspirações imperiais russas no que ficou conhecido como a Guerra do Cáucaso (1817 - 1864). Essa resistência seria encabeçada por proeminentes chefes tribais locais que geralmente eram sheykhs afiliados a uma tariqa sufi, uma ordem religiosa e mística do Islã, tornando esses guerreiros portadores de uma bandeira justa numa guerra santa contra o impiedoso inimigo cristão. Um dos líderes anteriores da resistência sufi-caucasiana incluía o amigo de infância e companheiro de estudos de Shamil, Ghazi Mollah, ambos pertencentes à tariqat Naqshbandi .

Em 1832, Ghazi Mollah morreu na Batalha de Gimry contra forças invasoras russas, e Shamil, apesar de ferido, foi um dos dois únicos Murids (palavra árabe que significa “aprendiz” ou “seguidor”, dada numa tariqa sufi a um discípulo que jura fidelidade a um sheykh, que se torna seu pai espiritual) a escapar. A partir daí, o chefe dos Murids naqshbandis tornou-se o próprio Shamil, que também se tornou com o tempo o chefe político e religioso de grande parte das tribos muçulmanas chechenas.

Uma de suas primeiras ações de sua jihad (ou “ghazavat” como era chamado no Cáucaso o ato de fazer guerra a um inimigo não-muçulmano) renovada contra o Império Russo foi em 1834, quando liderou um ataque a uma fortaleza russa em Akhulgo, tomada após 48 dias de cerco. Este sucesso inicial encorajou outros líderes muçulmanos da região a se unirem à causa liderada por Shamil.

Shamil foi capaz de derrotar os russos usando táticas de guerrilha, incluindo emboscadas, ataques surpresa e retiradas estratégicas. A vitória na Segunda Batalha de Gimry tornou Shamil uma figura lendária entre os povos do Cáucaso - e também entre os russos, que o passaram a ver como um inimigo mais que formidável. Ele se tornou conhecido por sua habilidade em liderar ataques surpresa e por sua capacidade de mobilizar rapidamente seus homens para responder às ameaças russas. Já seus homens eram conhecidos por serem tão duros e austeros quanto seu líder: inspirados pelo credo místico Naqshbandi e sua disciplina espiritual e esotérica, os homens viviam em vilas apenas de guerreiros (aouls) de onde saíam para fazer seu ghazavat contra os russos. Quando perguntado sobre como ele conseguia empreender uma luta tão radical contra uma potência estrangeira, Shamil é creditado ter declarado:

“O segredo da minha luta é o caminho [espiritual] Naqshbandi.”

Exemplificando a importância da disciplina espiritual islâmica não apenas para o moral das tropas, mas para sua luta física, também.

A sociedade chechena, por sua vez, também era altamente militarizada e a guerra e a violência faziam parte de seu cotidiano desde antes da chegada dos russos e do próprio Islã à região.

A influência de Shamil em Paul Atreides é evidente em sua caracterização como um líder guerreiro de inspiração religiosa que lidera uma guerra santa contra um império opressor. O personagem é visto como um herói relutante que é forçado a assumir o controle de uma causa maior do que ele mesmo, assim como o Imam Shamil. Além disso, ambos são líderes religiosos, com Shamil sendo um líder muçulmano na região do Cáucaso, enquanto Paul Atreides é visto como um messias pelos habitantes do planeta desértico Arrakis, que são seguidores de uma religião futurística criada por Herbert chamada Zensunni, uma mistura do Islã (sunita) com o Budismo Zen.

Paul lidera os oprimidos fremen de Arrakis, seguidores devotos do zensunnismo, contra a máquina de Guerra do Império - e posteriormente declarando uma jihad (esse é o exato termo usado por Herbert). Os fremen, como os chechenos, são uma sociedade marginalizada e brutalizada que vive em condições austeras: enquanto os chechenos do século XIX viviam nos sopés e vales dentre as montanhas do Cáucaso, os fremen vivem entre as dunas e cavernas de Arrakis. Ambos os povos são militarizados, com a guerra e a violência sendo constantes na vida principalmente de seus garotos, sempre treinados para se tornarem guerreiros.

A conexão entre Shamil e Paul Atreides também pode ser vista em suas estratégias militares e políticas. Ambos são líderes astutos que usam táticas de guerrilha e conhecimento do terreno para derrotar um inimigo muito mais poderoso, um Império, contra o qual não têm chance de igual para igual: a arma de Paul e dos fremen contra o Império e os Harkonnen é a mesma arma de Shamil e seus Murids contra os russos, a resiliência, a guerrilha e o atrito. Além disso, ambos tentam unir diferentes facções e tribos para formar uma força unificada contra o inimigo comum. Em resumo, a figura do Imam Shamil e todas as suas nuances influenciaram fortemente a criação do personagem Paul Atreides e de suas dinâmicas em "Duna". A liderança, estratégia e caráter do líder checheno foram elementos fundamentais na construção do herói relutante que lidera uma revolução religiosa contra um império opressor em uma galáxia distante.

Bibliografia:

  • KURTZ, Johann. The ‘warrior and mystic, ogre and saint’ who became Paul Atreides - Shamil, Part I: On the inspiration for Dune, ‘The Sabres of Paradise’.

Disponível em: https://becomingnoble.substack.com/p/the-warrior-and-mystic-ogre-and-saint

  • CHHABRA, Sameer. Frank Herbert's Dune novels were heavily influenced by Middle Eastern, Islamic cultures, says scholar. CBC, 2021.
  • DURRANI, Harris. The Muslimness of Dune: A Close Reading of “Appendix II: The Religion of Dune”. Tor, 2021.