INTRODUÇÃO HISTÓRICA

Antes de 711, súditos e vizinhos não poderiam fazer muito mais do que engolir à seco a presença do Reino Visigótico, fundado no século V a partir da traição dos godos ocidentais de seus empregadores e suseranos romanos.

Em seus períodos de auge, seu Estado se expandiu às custas de outros reinos poderosos dentro e fora da Ibéria, expulsando ou extinguindo os potentados que estivessem em seu caminho. Nos seus períodos de crise, perdeu poucos domínios e conseguiu resistir à francos e romanos-orientais (bizantinos) igualmente. Antes da invasão islâmica do século oitavo, embora as constantes guerras civis e assassinatos não parecessem ter qualquer previsão de término, poderia se dizer até mesmo que ele perduraria tanto quanto os francos e geraria, talvez, um Estado como a França que conhecemos.

Foi num curto intervalo de tempo, entre 711 e 717, que este reino aparentemente duradouro foi lançado subitamente numa cova – algo que nem o Império Bizantino em seu auge, com o imperador Justiniano e o general Belisário, foi capaz de executar. Dúvidas legítimas podem ser suscitadas do porquê um reino tão militarmente ativo sucumbiu tão facilmente tendo uma casta de guerreiros germânicos em exercício marcial semi-perpétuo. As explicações variam e se somam, incluindo faccionalismo na própria casta governante-guerreira, insatisfação das populações cristãs dominadas e não-assimiladas, a busca da expressiva minoria judaica por salvação diante da dura perseguição religiosa... e, é claro, excelência tática das hostes muçulmanas, que colocava em xeque a tradição militar milenar de impérios como o Persa, o Bizantino e o Chinês.

Apesar de herdarem toda uma densa estrutura urbana, econômica e pública dos romanos, das quais os visigodos mantiveram apenas a escravidão e a produção agrícola de grandes latifúndios, os governantes germânicos parecem tipificar o arquétipo barbárico que tantos escritores conservadores descrevem sem tê-los necessariamente em mente: capazes de destruir o que homens grandes do passado constroem, mas medíocres demais para construírem por conta própria um legado similar. Enquanto promoveram a destruição de aquedutos e de grandes estruturas do passado clássico, ainda que por motivos utilitários, como afligir a população local e um exército local de fome e sede durante um cerco contra um caudilho rival – numa das infinitas guerras civis e disputas locais de poder –, a capacidade de reparação, criação ou inovação dos visigodos foram sem dúvidas bem insatisfatórias até mesmo quando comparados com seus primos orientais, os ostrogodos.

Não é surpresa que historiadores, tanto antes quanto depois do estabelecimento da Ciência História, tenham de forma generalizada – à parte daqueles contaminados ou coagidos pela propaganda nacionalista e depois fascista do governo espanhol – exaltado a conquista islâmica do século oitavo como uma libertação e reflorescimento daquela antiga e inspiradora Hispania Romana, até então humilhada e moribunda.

Por meio dela, a nova Espanha Muçulmana se tornou a região mais rica do Ocidente; e foi só com o avanço da Reconquista e o crescimento do resto da Europa que, entre os séculos XII e XIII, o posto seria tomado pela França; causada, sem dúvidas, em grande parte pela incapacidade dos conquistadores católicos de manter os níveis de desenvolvimento das cidades e zonas rurais conquistadas dos muçulmanos. Ainda assim, podemos ver como esse legado beneficiou os conquistadores católicos, pelos registros de espionagem venezianos: em 1424, o rei de Castela, o maior reino da península, tinha rendimentos anuais de 800 mil ducados (3 milhões em 1414), enquanto o rei francês no mesmo período tinha rendimentos de 1 milhão (2 milhões em 1414, pouco antes da Batalha de Agincourt) e o rei inglês 700 mil ducados (2 milhões em 1414).

Mas enquanto o legado civilizacional positivo da invasão islâmica da Espanha é considerado consenso acadêmico, um tema que envolve a gênese dessa conquista ainda é discutido: a invasão islâmica foi de fato convidada pelos cristãos?

Por muitos séculos, era crença comum que sim: foi por convite e pela organização de um certo Juliano, conde de Ceuta, na África, que os muçulmanos invadiram a península ibérica pelo estreito do Gibraltar. Ao passo em que o papel militar das tropas do caudilho de Ceuta ainda é incerto, sendo geralmente assumido que as tropas arábio-berberes de Tariq ibn Ziyad devem ter guerreado praticamente sozinhas, o mero convite tornava a invasão moralmente justificada; motivo pelo qual, atualmente, um número crescente de intelectuais e influenciadores conservadores e/ou cristãos têm se dedicado intensamente a negá-la; algo que, da perspectiva puramente profissional da história, não tem um grande peso ou juízo moral, já que invasões e tomadas de terra eram realidades bem presentes e aceitas na lógica do homem alto-medieval.

Diga-se de passagem, embora a negação da existência ou papel do dito Juliano ser abraçada por esses promotores ideológicos, ela não partiu deles – em parte por sua incapacidade de produzir história profissional ou estudos críticos relevantes –, mas de historiadores críticos alheios à essas disputas. Por conta disto, é necessário entrarmos em detalhes sobre as fontes primárias, os historiadores e os argumentos levantados por apoiadores e opositores da historicidade de Julião.

O QUE AS FONTES DIZEM SOBRE JULIANO

O nome desta figura tem variado conforme a tentativa de adaptação à língua nativa do cronista medieval e da própria transformação linguística com o tempo. O nome Juliano aparece juntamente como Julião, Julián e as corrupções árabes Ilyan, Bulyan e Yulyan. Alguns historiadores modernos ainda sugerem uma tese controversa, que trataremos mais tarde, de que seu nome original seria Urbano (Urbanus).

Perspectiva do Estreito de Gibraltar, pela Nasa, com a África (Marrocos) à esquerda e a Europa (Espanha) à direita. A maior saliência do lado africano, indicando a menor distância entre os dois continentes (14km), é onde se localiza a antiga cidade de Ceuta. Importante notar, a perspectiva tem o relevo distorcido verticalmente em uma escala de 3, para destacar a geologia de ambos os continentes no estreito.

A grande controvérsia historiográfica em torno de sua figura parte do ponto de que a primeira e mais antiga fonte primária da conquista islâmica da Espanha, a Crônica Moçárabe de 754, escrita em latim e feita por um cristão vivendo em domínio andaluso, não menciona nenhum Julião. As primeiras fontes que mencionam a sua participação na conquista são de fontes muçulmanas do século seguinte e mais além. Alguns historiadores concluíram disto que o Conde Juliano simplesmente não existiu e a narrativa de seu convite à invasão seria uma lenda; alguns foram mais longe argumentando que ela foi criada com o objetivo de legitimar moralmente a invasão islâmica do reino.

A primeira fonte escrita a mencionar Juliano é muçulmana e do século seguinte. O cronista egípcio Abu'l Qāsim ʿAbd ar-Raḥman bin ʿAbdullah bin ʿAbd al-Ḥakam (801-871), ou simplesmente Ibn Abd al-Hakam, descreve sobre Juliano em sua obra A Conquista do Egito, Magrebe e Andalusia:

“O governador dos estreitos entre este distrito e Andalus era um estrangeiro chamado Ilyan (Juliano), Senhor de Septa (Ceuta). Ele também era o governador de uma cidade chamada Alchadra, situada no mesmo lado do estreito de Andalus que Tânger. Ilyan era um súdito de Roderic, o Senhor de Andalus [i.e. rei da Espanha], que residia em Toledo. Tarik se colocou em comunicação com Ilyan e o tratou com gentileza, até que eles fizeram as pazes um com o outro. Ilyan enviou uma de suas filhas para Roderic, o Senhor de Andalus, para seu aperfeiçoamento e educação; mas ela ficou grávida dele. Ilyan tendo ouvido falar disso, disse: Não vejo para ele outra punição ou recompensa, a não ser que eu traga os árabes contra ele. Ele enviou a Tarik, dizendo: Eu te trarei para Andalus; Tarik estava naquela época em Tlemsen e Musa Ibn Nossevr em Cairwan. Mas Tarik disse que não posso confiar em você até que me envie um refém. Assim sejam enviadas suas duas filhas, não tendo outros filhos. Tarik permitiu que eles permanecessem em Tlemsen, guardando-os de perto. Depois disso, Tarik foi para Ilyan, que estava em Septa, no estreito. Este último, regozijando-se com a sua vinda, disse: Eu te trarei para Andalus.” (ed. JONES, 1858)

Fontes muçulmanas dos séculos seguintes continuam mencionando Juliano e eventualmente fontes cristãs também fazem menção a ele; é delas, inclusive, que se generalizou o nome Florinda de la Cava para sua filha estuprada; a primeira fonte a registrar esse nome, inclusive, foi escrita por um cronista português: a Crónica Geral de Espanha de 1344, do bastardo real Pedro de Barcelos. O sepulcro de La Cava, de acordo com Miguel de Cervantes (1547-1616), era de conhecimento público peninsular, via tradição oral, tanto da parte de mouros, quanto da parte de cristãos.

As variações que as diferentes fontes têm em referência a Juliano dizem respeito à sua filiação – general bizantino em algumas fontes, vassalo do reino visigótico em outras – e o tipo de ofensa feita por Rodrigo à pessoa que seria sua filha ou mãe: dela ter sido estuprada por Rodrigo, possivelmente antes dele ascender ao trono, ou de ter sido seduzida e voluntariamente engravidado dele.

De qualquer forma, por meio da ofensa, Julião teria se aproximado dos muçulmanos sugerindo que eles invadissem a península, chegando a participar da expedição prévia de reconhecimento e da invasão em si. Com o sucesso da empreitada, ele recebeu – conforme previamente combinado – terras na própria Espanha.

ANÁLISE CRÍTICA DAS FONTES E DOS TRABALHOS FEITOS ENCIMA DO EPISÓDIO

Diante do espaço amostral de evidência e considerações cronísticas, embora a academia se divida entre os que afirmem e os que neguem a historicidade da figura de Julião e sua filha, existe de fato consistência histórica para o seu caso.

Muitos historiadores que defendem a sua historicidade ou sua consistência apontam que Julião muito provavelmente era um governante bizantino na África do Norte. Isso se desdobra de forma bastante interessante.

Durante o século VI, a antiga e importante cidade fenícia de Septa ou Septem foi reconquistada do Reino dos Vândalos pelo imperador Justiniano. Durante a invasão islâmica da África, Septa foi um dos pouquíssimos enclaves que sobreviveu à até então invencível máquina de guerra do Califado. Como qualquer registro sobre o Magrebe Bizantino é extremamente escasso, não temos evidência “segura” que prove ou refute que a cidade ainda se encontrava sob domínio bizantino no início do século VIII, o último registro que ambas as correntes aceitam como seguro mencionam a cidade sob comando do oficial Filágrio (Philagrius), um tesoureiro da corte de Constantinopla que foi exilado para o enclave em 641; ainda assim, esse ano só serve como terminus post quem da presença bizantina, podendo a cidade ter permanecido nas mãos de Filágrio por alguns meses, anos, ou até décadas.

Se excluirmos as fontes referentes a Julião, perdemos qualquer possibilidade de terminar quando Ceuta passou para o domínio do Califado. Sabemos, por outro lado, que a cidade foi destruída pelo Califado Omíada por volta de 740 d.C., quando esta era controlada por berberes islamizados rebeldes; o que, coincidentemente, é consistente com a cronologia de Julião, que teria governado Ceuta até sua morte, num ano indeterminado, sendo a partir de então governada diretamente por muçulmanos.

E se adicionarmos as fontes “não-seguras”? O que temos é bem interessante:

“As primeiras menções referem-se a 62/682, quando a grande incursão de 'Uqba havia chegado nos confins do Magrebe. Dela temos 4 versões, todas concordantes. A sequência é: após vencer 4 destacamentos (romanos e berberes) que se opuseram ao seu avanço, 'Uqba chega diante de Tanger. Alí se encontrou com um notável [...] chamado Yulyán, que lhes oferecem muitos presentes e reconheceu sua soberana [...] Uqba lhe tratou bem – porque era um homem inteligente e aguerrido – e lhe concedeu um emirado e lhe confirmou seu território. [...] depois lhe perguntou sobre o caminho à Espanha, e Juliano lhe disse ser difícil, por estar bem guardada [...] A partir daquela informação, 'Uqba marchou para combater os berberes” (p. 116).

A informação da fonte daria uma cronologia que indicaria que Juliano já era um potestas bizantino há décadas antes da invasão de Tarique, além de esclarecer os movimentos pelos quais os muçulmanos à princípio não tinham planos de invadir a Ibéria.

Alguns historiadores harmonizam o fato de Juliano ser um oficial bizantino com a sua vassalagem aos Visigodos: devido à linhas de suprimentos ruins, epidemias e comandantes pouco capazes, Ceuta teria ficado isolada e pouco protegida pela autoridade bizantina. Neste contexto, tanto os visigodos podem ter submetido Ceuta à sua suserania quanto o próprio Juliano pode tê-la buscado, para manter seu governo – como fontes muçulmanas também dizem que ele buscou se submeter à vassalagem teórica do Califado, ao invés de arriscar a sorte em um conflito armado. Esse tipo de estratégia utilitarista está longe de ser incomum: principados como a Transilvânia e a Valáquia, nos séculos XV, XVI e XVII, eram simultaneamente vassalos dos Habsburgos E dos turcos; por mais que isso soe contraditório, essa ambivalência era uma forma desses potentados de usar um suserano poderoso contra o outro, e manter sua independência através desse balanço de poder.

 

Fotografia panorâmica da vista do Marrocos a partir da Espanha, na altura do Estreito de Gibraltar. Foi por conta desta curta distância (14km) que os portugueses conseguiram assaltar a cidade de Ceuta de surpresa, em 1415, e tomá-la com facilidade. Ceuta, inclusive, pode ser vista em pequenos detalhes na própria fotografia.

A presença de sua filha na corte de Toledo, considerando então essa vassalagem ao rei visigótico, seria também condizente com a prática diplomática histórica de manter filhos de vassalos ou inimigos derrotados em suas cortes, criando assim uma forma de controlá-los e evitar que eles conspirassem contra a autoridade da Coroa: Vlad Tepes III (o drácula), Radu cel Frumos, Maurício Spatha e Skanderbeg são todos exemplos deste tipo de criação na política balcânica do século XV.

O título de Conde que se atribui a Juliano pode ser tanto visigótico quanto bizantino em origem: desde o Império Romano Tardo-Medieval, dividia-se militarmente um território em grandes províncias governadas por duques (dux), que por sua vez eram divididas em unidades menores governadas por condes (comes). Os reinos bárbaros como o Franco, Visigótico e Ostrogótico aderiram à esta nomenclatura e dividiam seus territórios da mesma forma, até que com o fim do Império Carolíngio e o aumento do poder dos governantes locais, esses títulos passaram a ser hereditários e associados com uma aristocracia própria e com terras – gerando assim as bases da nobreza medieval como conhecemos.

A controvérsia em relação às fontes, por outro lado, não é tão problemática considerando que se por algum motivo retirarmos a Crônica Moçárabe, ficaremos por séculos sem uma fonte cristã sobrevivente que nos diga qualquer coisa sobre o que aconteceu na península ibérica desta época. O fato da Crônica Moçárabe ser a única existente no seu próprio século significa mais que ela foi a única que sobreviveu das que possivelmente existiam no período. Fora que, tanto as crônicas muçulmanas mais tardias quanto a própria crônica moçárabe sofrem do mesmo problema: elas são baseadas ou em cadeias de transmissão oral ou em registros e crônicas não sobreviveram com o tempo.

Vemos uma problemática similar ao compararmos a Historiografia de Miguel o Sírio, no século XII, do período iconoclasta bizantino, no século VIII: os relatos que ele providencia não são informados na Crônica de Jorge Syncellus e São Teofanes, o Confessor (758-817). S. Miguel é o único autor a mencionar detalhes do Concílio Iconoclasta (754), descrevendo que os bispos iconoclastas participantes vieram de todas as partes do Império, incluindo Roma! E que a iconoclastia ganhou força no século nono por conta das fraudes do patriarca Nicéforo, um santo! As atas de Hieria e todas as fontes escritas por iconoclastas foram reunidas pela Igreja para serem destruídas enquanto autores como Teofanes reescreviam a história de maneira propagandística: não pegaria bem para a “reconstrução da realidade” se as pessoas soubessem debaixo do nariz do Papa seus bispos próximos fossem partidários do concílio herético, de acordo com S. Miguel, tão universal quanto Nicéia II (787), que condenou os iconoclastas. É por isso que, além de destruírem as fontes, os autores simplesmente se omitiram de falar qualquer coisa positiva de seus inimigos, enquanto mentiam e inventavam coisas negativas sobre eles. Por mais que Miguel não mencione suas fontes pelo nome, é fato consumado que ele teve acesso a fontes iconoclastas ou de obras prévias que compilaram fontes iconoclastas, permitindo que as informações destas sobrevivessem ao tempo; aliás, o próprio História Mundial de Miguel o Sírio só chegou aos nossos tempos em três manuscritos sobreviventes; fora a tradição manuscrita armênia, que removeu diversas passagens da sua obra e as transmitiu nessa forma reduzida. O caso de São Miguel é só o representativo mais óbvio de que a ausência de outras fontes além da Moçárabe não indica que tudo o que não consta nela é falso só porque as figuras e os eventos apareceram muito depois. Se for possível acusar as fontes islâmicas de criarem o relato (por quaisquer motivos), aprioristicamente é igualmente possível acusar a moçárabe de omitir o relato (pelos motivos inversos, como querer tirar a justificativa moral da invasão) – embora o desconhecimento seja uma explicação neutra, quanto ao caráter dos cronistas.

Um outro ponto ainda é significante: muitas coisas que não são mencionadas pela Crônica Moçárabe são caríssimas à narrativa nacionalista ibérica, a principal delas é o conflito de Don Pelágio de Asturias contra os muçulmanos e a sua vitória miraculosa em Covadonga (718/722), próximos aos eventos de Julião. Mas, à bem da verdade, toda a historiografia espanhola moderna trata Covadonga como uma fábula, um mito de construção nacional forjado pela monarquia ibérica para se autolegitimar e inspirar o povo no combate contra os infiéis. Das várias lições que a invenção cronística moçárabe de Covadonga mostra é que os cristãos, e especificamente os cristãos ibéricos moçárabes, não eram desconhecidos à arte da mentira.

JULIANO OU URBANO?

O fato de o nome Juliano não ser mencionado também não deve institivamente nos fazer descartar sua presença. Como já foi notado, por mais que “Juliano” não apareça na Crônica Moçárabe, temos uma figura com outro nome e que cumpre o mesmo papel do Juliano das fontes seguintes:

“Musa, tendo admitido o conselho de Urbano, homem de mui nobre estirpe, de uma região africana e educada na doutrina católica, que o havia acompanhado por todas as províncias espanholas...”

Não é difícil perceber a similaridade latina dos nomes Ivlianvs (ou Ivliani) ou Vrbanus (ou Vrbani). Muito provavelmente, o cronista de 754 e os cronistas árabes dos séculos seguintes se referiam à mesma pessoa pelo mesmo nome latino; e diga-se de passagem, alterações e traduções no idioma latino são ridiculamente comuns, tome o nome Agostinho (raiz latina), que ora aparecerá como Augustinus, ora como Augustini, ao passo que Epifânio (raiz grega), ora aparece como Ephiphanius, ora como Ephiphanii. A Crônica de 754, universalmente tida como “escrita com latim ruim”, ainda nos dá exemplos da limitação técnica do seu autor: Al-Walid ibn Adb al-Malik é referido como “Ulit”, o que hoje poderíamos entender como Ulisses.

As fontes muçulmanas descrevem até mesmo que os descendentes de Juliano criaram um clã a partir do seu nome: “Abu Suleyman-Ayub, Ibn al-Hakim, Ibn Abdallah, Ibn Melka, Ibn Bitro, Ibn Ilyan, que originalmente era gótico ... seu ancestral foi Ilyan, aquele conduziu os muçulmanos na Espanha. Ele [Ibn Ilyan] morreu em 326 AH (937-8 d.C)” (JONES, Ibid).

Apesar de Ibn significar literalmente “filho de”, o termo passou a virar de um patronímico a um sobrenome referente a um ancestral significante. Por exemplo, Mansur teria sido um guerreiro árabe gassânida que se assentou em Damasco; São João Damasceno era seu neto, e seu nome era Yuhanna ibn Mansur ibn Sarjun. Com o tempo a família de João, que se situava na mais alta aristocracia do Levante, manteve o ibn Mansur como sobrenome. Um processo paralelo existe em todas as línguas europeias: Afonso Henriques era filho do Conde Henrique, o “es” galego-português e o “ez” espanhol são todos patronímicos usado, à princípio, diretamente: os filhos de Afonso Henriques tinham nomes compostos como Dom Sancho Afonso e Henrique Afonso, por conta da cacofonia de “afonsês”; Peres (filho de Pero/Pedro), Fernandes (filho de Fernando) e afins passaram de patronímico à um sobrenome estático, de forma que qualquer “Gabriel Rodrigues” não necessariamente tem um pai chamado Rodrigo, mas sim um ancestral chamado Rodrigo. Esse processo se consolidou em todas as línguas europeias (Jones = filho de John, Williams = filho de William, fitzGerald = filho de Gerald), com exceção da Islândia, que ainda segue rigidamente o patronímico clássico.

O fato de fontes falarem de uma dinastia chamada “Julianez” no século X que traça origens ao Juliano conde de Ceuta, juntamente com toda a evidência substanciada, encerra completamente quaisquer dúvidas sobre a sua historicidade.

REFERÊNCIAS

MEDIEVALISTS.NET. The Power of the Medieval States. Disponível em: https://www.medievalists.net/2016/01/the-power-of-medieval-states-a-report-from-the-year-1423/.

Ibn Abd-el-Hakem. Dhikr Fatḥ Al-Andalus: Ibn Abd-el-Hakem's History of the Conquest of Spain, tr. JONES, John H. Gottingen: W. Fr. Kaestner, 1858. Disponível em: http://elibrary.bsu.edu.az/files/books_400/N_216.pdf. Acesso em 20 de março de 2023.

CHALMETA, Pedro. Invasion y Islamizacion. Editorial Mapfre.

FERNANDEZ, HERNAN. Dialnet-Cronica Mozarabe Del 754. Al-Quantir, 10, 2010.

CHIPULINA, Neville. Crónicas Mozarabe de 754. The People of Gibraltar, 2020.

Roger Collins, The Arab Conquest of Spain, 710–97 (Blackwell, 1989)

Elizabeth Drayson, The King and the Whore: King Roderick and La Cava (Palgrave Macmillan, 2007).

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Rafael Altamira, "Spain under the Visigoths", in H. M. Gwatkin and J. P. Whitney, eds., The Cambridge Medieval History (Macmillan, 1913)