Os Khawarij são cães do Inferno

Profeta Muhammad (Sunan Ibn Mājah, 173)

Os Khawarij ou, “aqueles que saíram”, surgiram como membros de uma seita no primeiro século do Islã durante a Primeira Fitna, entre 656 e 661, a crise de liderança após o assassinato do califa Osman Ibn Affan, em 656.

A morte de Osman foi um divisor de águas para a comunidade muçulmana primitiva. De um lado, havia seu sucessor, o califa Ali, relutando em punir os assassinos, temendo que sua interferência gerasse uma grande guerra civil. Do outro lado, o primo de Osman, Muawiyah, o governador da Síria, queria justiça pelo sangue de seu parente assassinado a todo custo.

A contragosto de Ali, a guerra acabou estourando de qualquer forma. Em 657, as forças de Ali e Muawiyah se encontraram na Batalha de Siffin. Inicialmente, a batalha foi em desvantagem de Muawiyah, porém, à beira da derrota, Muawiyah propôs a Ali resolver sua disputa por meio de arbitragem.

O início do Movimento Kharijita

Para resolver a guerra civil, que iniciou em 657, Muawiyah e Ali acordaram que cada lado deveria designar árbitros que pronunciariam o julgamento de acordo com sua interpretação da situação, de modo a cada lado ter suas demandas atendidas.

Enquanto a maioria do exército de Ali aceitou a proposta, um grupo se opôs veementemente à arbitragem e deixou as fileiras do exército de Ali. Desse momento em diante, esse ajuntamento passou a ser conhecido como os Khawarij, ou “Aqueles que saíram”.

Esses dissidentes, que iniciaram o que se tornaria conhecido como o movimento kharijita, queriam se separar do exército de Ali para defender seus princípios de interpretação extremistas.

Eles sustentavam que o terceiro califa, Osman, havia merecido sua morte por causa de suas falhas, e que Ali era o califa legítimo, enquanto Muawiya era um rebelde. Eles acreditavam que o Alcorão afirmava claramente que, como rebelde, Muawiya não tinha direito à arbitragem, mas deveria ser combatido até que se arrependesse, apontando para o versículo:

E quando dois grupos de fiéis combaterem entre si, reconciliai-os, então. E se um grupo provocar outro, combatei o provocador, até que se cumpram os desígnios de Deus. Se, porém, se cumprirem (os desígnios), então reconciliai-os equitativamente e sede equânimes, porque Deus aprecia os equânimes.

(Alcorão 49:9)

Os dissidentes afirmavam que, ao concordar com a arbitragem pela paz, Ali cometeu o grave pecado de rejeitar o julgamento de Deus (hukm) e tentou o substituir com julgamento humano, fazendo dele, e de Muawiyah, bem como de todos os muçulmanos que os apoiassem, infiéis.

Essa ênfase em “só quem pode julgar é Allah” motivou seu lema “la hukma illa li-llah”, que em português quer dizer “O julgamento pertence somente a Deus”, fazendo com que o grupo fosse referido em algumas fontes primárias como “Muhakkima” ou “os julgadores”.

O grupo inicial de dissidentes foi para a aldeia de Harura, perto de Kufa, no Iraque. Lá, eles elegeram um obscuro soldado chamado Ibn Wahb al-Rasibi como seu líder.

Outros desertores de Kufa, onde o exército de Ali havia retornado, enquanto aguardavam o resultado da arbitragem, foram gradualmente se juntando aos dissidentes, enquanto Ali persuadiu alguns dissidentes a retornarem a Kufa.

No entanto, quando a arbitragem terminou em um veredicto desfavorável a Ali, um grande número de seus seguidores deixou Kufa para se juntar a Ibn Wahb, que entretanto havia mudado seu acampamento para outro local ao longo do canal Nahrawan.

Neste ponto, os kharijitas proclamaram que o califado de Ali era nulo e começaram a denunciar como infiéis qualquer um que não aceitasse seu ponto de vista. De Nahrawan eles começaram a provocar revoltas contra Ali e invadir seus territórios.

Uma passagem demonstra a natureza do movimento e seus membros:

A caminho de Nahrawan, os Khawarij encontraram Abdullah, o filho de Khabbab bin Al-Aratt, um nobre companheiro do Profeta Muhammad, e se apoderaram dele. Eles lhe perguntaram: “Quem é você?” Ele respondeu: “Eu sou Abdullah Ibn Khabbab, o companheiro do Mensageiro de Allah.”

Narra-nos um dito do profeta que você ouviu de seu pai”, e ele disse:“Eu ouvi meu pai dizer: ”O mensageiro de Deus, que a paz e as bênçãos estejam sobre ele, disse: “Haverá uma Fitna (”calamidade” ou ”divisão”) em que aqueles que ficarem em seus lugares serão melhores de que os que a ela se dirigirem andando, e os que se dirigem andando melhores de que os que a ela correrem.

Portanto, quem não tiver escolha a não ser matar ou ser morto, deixe-o ser morto e não seja ele o assassino.” Eles perguntaram:“ O que você diz sobre Abu Bakr e Omar? ” Abdullah disse boas palavras de elogio sobre eles.

Eles disseram: “O que você diz em relação a At-Ta’hkim (arbitragem que Ali e Muawiyah procuraram para tentar resolver o conflito)?” Ele disse: “Eu digo que Ali tem um conhecimento melhor no Livro de Allah (o Alcorão), é mais cuidadoso com a religião e tem mais sabedoria do que vocês!” Eles disseram: “Você não segue a Verdade e a Orientação.

Em vez disso, você segue os homens de acordo com a fama deles.” Eles então disseram a ele:“ Este Alcorão (que você carrega) em volta do pescoço nos ordena a te matar.” Ele disse: ”Quem quer que o Alcorão preserve sua vida, você preserva sua vida por sua vez.

E quem quer que o Alcorão derrame o sangue, dê-lhe a morte por sua vez.” Então, eles trouxeram Abdullah para perto do rio, e um deles, Musmi Ibn Qhadali, cortou sua garganta. Então, eles entraram em sua casa e mataram seus filhos e também sua esposa, que estava grávida, e abriram sua barriga.

Quando as tentativas de conciliação com eles falharam, as forças de Ali atacaram os kharijitas em seu acampamento, infligindo uma pesada derrota a eles na Batalha de Nahrawan, em 658, matando Ibn Wahb e a maioria de seus partidários. Este derramamento de sangue selou a divisão entre os kharijitas e os seguidores de Ali, bem como seu ódio visceral sobre o resto dos muçulmanos.

A violência Khawarij

Para criar ainda mais divisão e terror dentro da comunidade muçulmana, os Khawarij passaram a realizar pequenos atentados em espaços públicos. Eles costumavam sair com suas espadas pelos mercados, e quando as pessoas se reuniam inconscientes, eles de repente clamavam: “Laa hukm illa lillah!” “o julgamento pertence somente a Deus”, e então atacavam todos a vista, e continuavam matando pessoas até que eles mesmos fossem mortos.

A escalada da violência Khawarij tomaria uma nova forma em 661, com membros do grupo planejando o assassinato dos principais envolvidos na ”arbitragem infiel”, Muawiyah, seu árbitro Amr ibn al-As e Ali.

As tentativas de assassinato aconteceriam simultaneamente quando os três líderes viessem liderar a oração da manhã (Fajr) em suas respectivas cidades de Damasco na Síria, Fustat no Egito e Kufa no Iraque. O método era sair das fileiras de oração e atingir os alvos com uma espada mergulhada em veneno.

Muawiya escapou da tentativa de assassinato com apenas ferimentos leves. Amr estava doente, e o vice que estava liderando as orações em seu lugar foi martirizado. No entanto, Ali não escapou do assassino Abdur-Rahmaan ibn-Muljim, e foi gravemente ferido, sucumbindo alguns dias depois.

Por centenas de anos os Khawarij continuaram a ser uma fonte de insurreição contra o califado, e foram condenados como hereges pela maioria esmagadora dos eruditos islâmicos, na verdade, por todos que não fossem membros do grupo.

O movimento Khawarij histórico se dividiu em vários sub-grupos e passaram a divergir entre si, sendo o segmento Ibadi, majoritário em Omã, no sul da Arábia, o único remanescente moderno dos Khawarij medievais históricos e em alguns outros bolsões minoritários na Argélia, Tunísia, Líbia e Zanzibar.

Contudo, não possuindo mais as mesmas interpretações extremistas. Na era moderna, vários teólogos e observadores muçulmanos compararam as crenças e ações do Estado Islâmico (EI), da al-Qaeda e de grupos afins aos khawarij.

Em particular, os grupos compartilham a abordagem radical dos mesmos, segundo a qual, a maioria dos muçulmanos são declarados infiéis quando deles divergem, e portanto, os consideram dignos de morte.

No século XVIII, o proeminente estudioso sírio da escola hanafi Ibn Abidin (1783–1836) declarou o movimento wahabita de Muhammad ibn Abd al-Wahhab, um dos pais do atual salafismo, como khawarij moderno.

De acordo com interpretações de muitos teólogos muçulmanos das tradições do Profeta (hadiths) as ideias dos khawarij continuarão a causar conflitos na comunidade muçulmana até o fim dos tempos, visto que ditos do Profeta os descrevem e confirmam seu surgimento e ressurgimento.

Bibliografias: