Antes que Marvão (Abderramane ibne Maruane ibn Yunus) iniciasse sua série de insurgências contra a autoridade central de Córdoba a partir do seu núcleo lusitano, seus ambiciosos projetos de ascensão política já haviam sido antecedidos por uma outra figura ilustre: Musa ibn Musa.

Atuando em ambos os extremos da península ibérica, Musa e Marvão compartilham perfis um tanto similares: o fato de ambos serem muçulmanos ibéricos, descendentes de famílias de caudilhos do Emirado de Córdoba e de terem suas revoltas de uma forma ou de outra associadas a um estranhamento entre muçulmanos de etnias nativas vs. muçulmanos árabes ou berberes parece revelar um padrão interessante sobre os problemas enfrentados pelo decadente Emirado de Córdoba, no período final de sua existência; estes problemas acabam expondo uma tendência precoce de fragmentação da Espanha Muçulmana em pequenos principados, como mais tarde eventualmente teremos em seu sentido pleno no Primeiro Período das Taifas. Por último, mas talvez não menos importante, temos o fato de que tanto Marvão quanto Musa eram muladis – termo dado à muçulmanos miscigenados, sejam por mistura árabe-ibérica ou por mistura berbere-ibéricos.

Musa em si arroga para si uma herança genética tão importante que quase beira ao mitológico: como um membro do clã Banu Qasi – daí o epiteto al-Qasawi, Musa seria descendente de ninguém menos que o próprio Conde Cássio, um aristocrata visigodo ou hispano-romano que se reverteu ao Islamismo ainda no século oitavo, durante a Conquista Islâmica do Reino Visigótico da Espanha e deu origem a uma importante dinastia precoce de muçulmanos ibéricos e “culturalmente” arabizados – aspas bem grandes em “culturalmente”.

A cronologia e ascendência próxima de Musa ibn Musa é um tanto controversa e vaga, graças à escassez de documentos sobreviventes e às contradições nos documentos existentes: Musa ibn Furtun, um ancestral que é geralmente tido como seu próprio pai – algumas reconstruções modernas sugerem que este na verdade seria o seu avô – foi assassinado ainda na infância de Musa ibn Musa, muito provavelmente pelas frequentes intrigas políticas de aristocratas de al-Andaluz. Sua mãe, por outro lado, Onneca, contraiu ao menos dois casamentos: um com o pai de Musa, dando continuidade à dinastia muçulmana, e outra com um chefe basco cristão, que geraria o impetuoso caudilho conhecido como Íñigo Arista. Embora se possa pensar que houvesse um conflito bastante definido entre os meio-irmãos Musa e Íñigo, a relação entre o futuro caudilho muçulmano e o futuro caudilho cristão era na verdade bastante frutuosa; e se é verdade que Musa perdeu o pai ainda na juventude, talvez faça sentido crer que boa parte da vida não-registrada de Musa tenha se dado, na verdade, em uma corte cristã.

De qualquer forma, nesta altura, o domínio feudal dos Qasawi, se é que podemos chamar assim, era fronteiriço ao próprio País Basco, na época sobre suserania teórica do Império de Carlos Magno, agora governada totalmente por seu filho Luís, cognominado o Piedoso.

Mapa com a extensão dos domínios do Banu Qasi sob Musa ibn Musa. © Desperta Ferro Editions

A morte de Carlos Magno trouxe um novo panorama para a Europa Ocidental: Luís, quer competente quer não, jamais poderia manter aquele padrão de competência mostrado por seu pai. Sem esse controle firme e intimidador, os inimigos de dentro e de fora do Império encontrariam a oportunidade perfeita para tentar espoliar o que antes era o mais poderoso Estado da região. Além da intensificação das incursões vikings, pelo mar, a fronteira franca na península ibérica encontrar-se-ia particularmente ameaçada. E foi justamente no país basco, local onde Carlos Magno sofreu a principal derrota de todo o seu governo, que a rebelião contra a autoridade franca se levantaria novamente, infligindo nos francos a mesma humilhação em Roncesvales, quando tropas leais ao Kaiser Luís foram emboscadas na passagem rochosa que permitia atravessar as cordilheiras dos Pirineus, uma cadeia de montanhas que separa a Gália Franca e a península ibérica.

Acredita-se que Musa teria participado desta Segunda Batalha de Roncesvales (824) junto dos rebeldes bascos, por conta de seus laços com o clã de Íñigo. A vitória estabeleceria a separação de grande parte do país basco como um reino independente: o reino de Pamplona, mais tarde conhecido como reino de Navarra. Por mais que os mitos de construção nacional tentem estabelecer este primevo Estado autodeterminado ibérico como um nascente reino da Reconquista, a verdade é que os bascos fizeram bastante uso de seus laços diplomáticos com muçulmanos, ora lutando contra francos, ora lutando contra muçulmanos, e ora lutando entre si. Literalmente, nada que seja particularmente desconhecido à realidade geopolítica da maioria dos reinos daquela época. A ajuda prestada pelos Banu Qasi aos bascos seria repetida novamente em 839 AD, quando o filho de Musa ibn Musa, Furtun ibn Musa, teria liderado uma campanha que teria resultado na proteção de Álava e na expulsão de um “rei dos gauleses” chamado “Loderik” ou “Luzriq”; desnecessário dizer, estamos aqui falando de uma cooperação basca-qasawi contra uma incursão carolíngia liderada pelo imperador Luís.

A primeira referência de Musa ibn Musa em si ocorre nos primeiros anos da década de 840, não surpreendentemente por causa de uma revolta: Musa pegou em armas para revidar a expulsão de um de seus parentes de clã, promovida por dois governadores árabes do Emirado, também pertencentes a um clã próprio. Embora fosse uma guerra privada entre aristocratas muçulmanos da Espanha Islâmica, Íñigo Arista pegou em armas pela causa de Musa, revelando a complexa malha de apoio e de parentesco do período. O Emir de Córdoba, contudo, não gostou muito da ideia dos Qasawi, revidando com sua própria campanha contra as terras do clã muladi. Isto não parece, porém, ter sido o fim das terras da família, porque logo no ano seguinte – 842 – Musa estaria encarregado de comandar a vanguarda do exército do Emir contra a Cerdanya, na Catalunha Cristã. Contudo, como convinha ser, Musa logo se rebelou contra o comandante do exército e desertou a vanguarda e a colocou contra o próprio exército cordovês, adquirindo uma grande vitória; nisto, ele foi apoiado pelo seu sobrinho, García Íñiguez de Pamplona, filho de Íñigo, agora rei de Pamplona. Musa novamente enfrentaria o exército do Emir no ano seguinte, também apoiado pela família real de Pamplona, emboscando um exército cordovês em al-Harit e capturando o comandante do Emir. Desta vez, Córdoba tinha esgotado sua paciência, erguendo um imenso exército comandando pelo próprio Emir para punir tanto os Banu Qasi quanto os Íñiguez; esta campanha punitiva teria causado uma pesada derrota nestes, causando caos ao país basco e escravizando vários civis nos arredores da própria Córdoba. Uma segunda expedição punitiva, realizada no ano seguinte (844), foi responsável por destruir as forças de ambas as famílias, a submissão das suas províncias. Tanto Musa quanto Iñigo quase morreram em uma das batalhas desta campanha, sobrevivendo apenas por uma fuga desesperada – nesta altura, a submissão à Córdoba era a escolha mais óbvia, permitindo que Musa pudesse se redimir e até restaurar um pouco de seu prestígio anterior.

Em novembro de 844, Musa ibn Musa lideraria um exército reunido no principado dos Banu Qasi até Sevilha, mas desta vez pelo Emirado de Córdoba: segundo as notícias, invasores vikings liderados por um dos filhos de Ragnar Lodbrock (Björn Flancos-de-Ferro) haviam invadido Sevilha e causando grande calamidade; matando, queimando, escravizando e saqueando a grande e rica cidade andaluza. Nos dias seguintes à chegada de Musa à Sevilha, diversos confrontos com os invasores vikings seriam travados, com resultados variados, mas que no geral parecem ter dado uma vitória estratégica para os defensores andaluzes. Os vikings que não foram mortos em combate ou executados nas palmeiras da cidade recuaram para seus dracáres ou negociaram acordos de retirada segura e entrega de suprimentos em troca da devolução de saque e escravos tomados nos dias anteriores. A frota viking, muito afetada também pelo uso do fogo grego – uma substância à base de petróleo inventada pela marinha bizantina que queimava mesmo em contato com a água – recuou, sendo perseguida pela marinha do Emirado e eventualmente deixando a Espanha Islâmica após uma breve incursão de rapina pelo Algarve (atual sul de Portugal).

A vitória e o prestígio alcançado na expulsão dos vikings de Sevilha parecem ter alimentado a moral de Musa, que se rebelaria no ano seguinte. Esta e outras rebeliões dispostas entre 844 e 850, também apoiadas por seu meio-irmão Íñigo, resultariam, contudo, em resultados pouco favoráveis a Musa, que teria que lidar com derrotas e oposição por parte de indivíduos do seu próprio clã, que optaram por permanecerem leais ao Emirado. Em 851 ou 852, Íñigo morreria e Musa acabaria obtendo uma derrota importante contra tropas bascas ou gascãs em Albelda, expandindo ainda mais o território que efetivamente era uma taifa autônoma sob vassalagem teórica ao Emirado de Córdoba. O novo emir, mais fraco, legitimou a autoridade de Musa sobre estas terras como governador da Marca Alta de Al-Andaluz e tolerou o principado essencialmente autônomo de Musa, que agora compunha uma rede de poderosos enclaves como Zaragoza, Tudela, Huesca e Toledo, num território que se estendia de Nájera, no atual país Basco, até Zaragoza e Calatayud, sendo considerado equivalente ao próprio Emirado e ao Reino Cristão de Astúrias; assim, este terceiro potentado deu a Musa o epiteto de “o terceiro rei da Espanha”.

Apesar disto, quando a população cristã e muçulmana nativa e muladi se revoltou contra Córdoba, apoiada pelos reis cristãos de Astúrias e Pamplona, acredita-se que Musa teria prestado auxílio ao próprio Emirado (permitindo mais tarde que seu filho se tornasse o governador de Toledo). No ano seguinte, 855, Musa liderou um exército cordovês contra o Reino de Astúrias, uma campanha independente contra os condados cristãos da Catalunha e deu livre passagem para que um exército viking pudesse se mover por suas terras para atacar Pamplona, onde o seu sobrinho e antigo aliado seria capturado e resgatado por uma gorda recompensa de 70 ou 90 mil dinares de ouro. Isto foi a gota d’agua para o ramo cristão da família de Musa, que se uniu a Astúrias e inflingiu uma pesada derrota na Segunda Batalha de Albelda – ano não-especificado. Graças às perdas sofridas nesta batalha, Musa perdeu completamente a capacidade de se manter como um rei de taifa dentro do Emirado de Córdoba, sendo reduzido à condição de um mero governador que, embora possuidor de muitas terras, era subserviente à autoridade de Córdoba.

Musa morreu em 26 de setembro de 862, em consequências dos ferimentos recebidos em uma guerra privada com seu cunhado, o berbere Azraq ibn Mantil ibn Salim, governador de Guadalajara pelo Emirado, numa tentativa fútil de demonstração de poder, buscando recuperar parte de sua autonomia. Seus descendentes herdariam um principado decadente situado bem no meio da fronteira entre os reinos cristãos do Norte e as províncias mais leais de Córdoba, ao sul, até finalmente serem completamente incorporados no revigorado Califado de Córdoba, nos últimos anos de 920’s.

REFERÊNCIAS:

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