Muito foi dito sobre o novo governo do Talibã nos dezesseis meses desde sua chegada ao poder em agosto de 2021. O Talibã mudou? Se sim, isto era parte de uma reorientação ideológica mais ampla ou devido a uma maturidade política? Na frente e no centro de todas as discussões estava um tópico: as escolas para garotas.

As escolas para garotas entre a sexta e a décima segunda série foram fechadas após a tomada do poder pelo Talibã. As escolas seriam abertas, foi inicialmente prometido, em 23 de março. Horas depois, naquele mesmo dia, o primeiro do ano letivo, as escolas foram novamente fechadas “até novo aviso”, e permaneceram fechadas desde então. Após meses de explicações contraditórias e de um implacável coro de críticas (inter)nacionais, Cabul finalmente deu uma explicação. “O governo está tentando”, disse Abdul Qahar Balkhi, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, “fazer uma abordagem gradual”. Isso porque uma “grande porcentagem da sociedade tem ideias bastante estritas sobre o que as mulheres podem ou não podem fazer”. O fechamento era uma “suspensão temporária”, não um banimento [1].

Então, veio o edital de ontem. Os servidores deveriam “implementar urgentemente”, nas universidades, o banimento existente nas escolas para garotas, novamente, “até novo aviso”. As garotas estão oficialmente barradas da universidade [2], e a indignação ferve.

Antigo é o debate sobre a “boa” educação contra a “má” doutrinação: discutido por mentes tão antigas e tão grandiosas quanto Platão. Debate não é, ao contrário da cobertura desproporcional, exclusiva ao Afeganistão. Mesmo as salas de aula ocidentais se encontram sujeitas a uma sombra cada vez maior de questões sociais polarizadas, incluindo aquelas tão fundamentais, como o gênero.

Inimigos diametralmente opostos, a União Soviética e os Estados Unidos compartilhavam um surpreendente nível de similaridades no que diz respeito às suas ocupações do Afeganistão. Duma perspectiva afegã, as duas ocupações constituíram fases de uma guerra que só terminou com a tomada do poder pelo Talibã. Ambos asseguraram cidades afegãs enquanto eram confrontados por um mar circundante de extensas e cada vez mais hostis zonas rurais. Os dois tiveram problemas com a ajuda paquistanesa às insurgências. As duas insurgências, por sua vez, compartilharam o mesmo DNA: rural e islâmico. Isto apesar de os Estados Unidos, em 2001, cooptar alguns mujahideen anti-soviéticos, agora leais a um ocupante em troca de seus favores.

Os dois eram notavelmente similares, no entanto, no embelezamento de suas ocupações. A geopolítica ditou o ímpeto para invadir o Afeganistão. Mesmo assim, tanto o Kremlin, quanto Washington, invocaram altos valores para galvanizar apoio àquilo que rapidamente se tornaram ocupações militares sangrentas e cada vez mais impopulares. Era dito aos russos, americanos e afegãos que a ocupação anunciaria uma nova alvorada. Um novo capítulo da modernidade, que até então escapava ao Afeganistão, acenava, sustentado pela educação e pelos direitos das mulheres.

“A paz será alcançada”, prometeu o presidente Bush em 2002, “ajudando o Afeganistão a desenvolver seu próprio governo estável [e] através de um sistema educacional para meninos e meninas”. O Afeganistão iria “desenvolver uma economia que pudesse alimentar seu povo sem alimentar a demanda mundial por drogas” [3]. Mas não foi bem assim. Os Estados Unidos, assim como o Kremlin, encerraram sua ocupação. Nas duas ocasiões, tropas foram retiradas, regimes clientes colapsaram e insurgências religiosamente conservadoras, endurecidas pelo que foi exposto, tomaram o poder.

À medida que a poeira baixava no Afeganistão, as consequências de décadas de politização da educação e dos direitos das mulheres se desvelavam. Contaminados estavam os valores em cujo nome guerras foram travadas e o país sujeito à ocupação. Agora vitoriosos, as insurgências representavam os blocos nos quais esses sentimentos eram mais fortes; sentimentos logo consagrados na política. No Afeganistão pós-americano, é a educação moderna que emergiu como fonte de contenção, e não pela primeira vez.

“Homens afegãos”, um convidado da BBC recentemente afirmou, “apoiam o Talibã”, em suas políticas em relação às mulheres. Isso era parte duma resposta ao apresentador, que perguntou por que os homens afegãos, como os homens iranianos, não protestavam pelos direitos das mulheres [4]. Não só a pergunta, que revelava uma falta de apreciação pelas vastas diferenças entre os dois países, que era de cair o queixo. O convidado, mesmo após uma resposta que fedia a intolerância, permaneceu incontestado pelo apresentado. Em pleno vigor está o modus operandi experimentado e testado grande mídia: o sensacionalismo histérico.

O racismo generalizado contra afegãos é normalizado nos fóruns internacionais e os desenvolvimentos mais profundos ainda são ignorados. Um desses desenvolvimentos é o livro mais recente do Talibã: O Emirado Islâmico e Seu Sistema. Para aqueles descontentes com perguntas estúpidas e respostas ainda mais desqualificadas, esses desenvolvimentos não são apenas dignos de nota; sua dissecação é imperativa. Cobrindo legislação, judiciário e, mais importante, educação, o livro é um divisor de águas. Esta é a primeira tentativa do Talibã, em tempos de paz, de articular, em seus próprios termos, sua filosofia de governança. Sua importância é reforçada por seu autor, Sheikh Abdul-Hakim Haqqani.

Haqqani

Haqqani vem do grupo de mashran (anciãos) religiosos formados em madraças no extremo sul do Afeganistão. Sua posição foi demonstrada em Doha. Chefe da delegação do Talibã, Haqqani liderou as conversas durante as negociações intra-afegãs; negociações que se tornaram redundantes com a vitória militar do Talibã. Tutor de todos os três líderes do Talibã desde então, e conhecimento como ‘ustad al-ulama (professor dos sábios), Haqqani ostenta um pedigree acadêmico que impõe respeito e, supostamente, até a deferência de Amir Hebatullah Akhundzada. Sua importância não pode ser exagerada. Atual Chefe de Justiça, é Haqqani, acima de outros, que está encarregado de alcançar o objetivo político-legal de fazer o Emirado do Talibã fiel ao seu nome, suficientemente islâmico. Quer seja viável ou imprudente, o papel de Haqqani nesta empreitada é revelador.

“Não negamos”, declara Haqqani, “a importância da educação moderna”. “Nem”, apesar de uma advertência sobre a qual ele expande, “negamos sua permissibilidade ou necessidade”. Era “obrigatório”, no entanto, “que um estado [islâmico] priorizasse a educação religiosa em relação à educação secular”. A educação secular deveria ser incorporada no guarda-chuva de uma educação religiosa mais abrangente. Separar os dois, segunda Haqqani, era como relegar o religioso ao secular.

É provável que Haqqani nunca tenha lido o Professor Wael Hallaq de Columbia. Sua objeção em relação à bifurcação da educação religiosa e secular, entretanto, é quase idêntica à ampla avaliação de Hallaq sobre o secularismo. Através da lente da “teologia política”, Hallaq postula, “o secularismo é o assassinato de Deus através do Estado”, já que o “estado pode delimitar, limitar, excluir e restringir qualquer prática religiosa e, portanto, tem o poder de terminar a qualidade e quantidade da esfera religiosa como bem entender”. Neste paradigma, o estado não se conformaria com uma estrutura religiosa, mas a religião estaria sujeita à definição estatal de religião e, portanto, ao poder estatal. “O estado”, portanto, “é o supremo Soberano” [5].

Similarmente, separar a educação religiosa e secular era a ascensão do temporal sobre o espiritual. Isso daria o poder a uma autoridade externa, não-religiosa, de decidir pela religião ela seria e o que não seria. O criticismo de Haqqani contra isto não é apenas incisiva; ele defendia que fosse interrompida “com os meios mais contundentes”, considerando-a um complô “para corromper a retidão moral dos muçulmanos e desviá-los da religião de Deus”. Esta bifurcação não foi apenas responsável pela instabilidade no Afeganistão; foi responsável pelo declínio do mundo islâmico como um todo.

Em abril, escrevi sobre o reinstituído Ministério do Vício e da Virtude [6]. Assim como esse ministério e sua controvérsia circundante, o debate sobre a educação tem uma longa história, anterior ao Talibã. A controvérsia sobre a educação começou quase que imediatamente após as primeiras tentativas de modernização do estado. O debate sobre a educação e sua separação (ou ausência) entre a religiosa e a secular é parte de um tema mais amplo: a contínua e não resolvida dialética entre a modernidade, por um lado, e ampla estrutura religiosa clássica, por outro. Essa estrutura, comumente tida como antiquada, se mostrou resiliente, persistindo às repetidas, sangrentas e malsucedidas tentativas de Cabul em destruí-la. Constantemente, isso foi realizado com ajuda externa. A modernidade em si foi contaminada com memórias de exércitos estrangeiros, soviéticos ou americanos e seus repetidos ataques a tudo que é afegão.

O problemático início da educação afegã

O século XIX foi traumático do ponto de vista afegão. Antes um império, o Afeganistão era, agora, um estado-tampão imprensando entre e à mercê da Rússia e da Índia Britânica. Os britânicos invadiram o país duas vezes. Expulsando-os nas duas ocasiões, o Afeganistão teve, no processo, de ceder território e o controle sobre suas relações exteriores aos britânicos. De algum consolo foi a construção e centralização sem precedentes do Estado no final do século XIX. No século XX, as elites afegãs, às quais se juntaram afegãos que retornavam do exílio e em crescente sincronia com o mundo, estavam chegando a uma conclusão: o Afeganistão necessitava urgentemente de modernização. Um afegão, voltando do exílio no Império Otomano, parente da família real, foi particularmente importante: Mahmud Tarzi. Ele tinha novas ideias.

Os esforços dos Jovens Afegãos (inspirados pelos Jovens Turcos) de Tarzi levaram à construção da primeira escola moderna do Afeganistão em 1904. A Habibiyya, em Cabul, ensina biologia, química, história, pashto (promovida como língua nacional) e turco (demonstrando a influência otomana) [7]. O Afeganistão estava entrando na modernidade lentamente, mas controversamente; os currículos tradicionais operaram sob a égide das madraças, com os ulemás no topo. A educação moderna desencadeou sua oposição; muitos estavam paranoicos com as mudanças mais amplas que a educação ocidental poderia engendrar. O compromisso foi que a admissão na Habibiyya seria condicionada à conclusão das etapas primária e secundária da madraça [8].

A historiografia predominante, previsivelmente, descreve Tarzi como um ativista “progressista” da educação (ocidental). Seus detratores, por outro lado, se encaixam facilmente no arquétipo de homens poderosos e religiosos, obstinados pelo atraso e que se opõem ao esclarecimento. O impulso de Tarzi pela educação, no entanto, era parte de seu pan-islamismo: em grande medida, em resposta ao imperialismo europeu com que tanto o Império Otomano, quanto o Afeganistão eram confrontados. Tarzi acreditava que a panaceia era a educação moderna, à qual os ulemás tinham pouca exposição e entendimento. Sua antipatia era especificamente em relação à educação ocidental. Os paralelos com os dias atuais são gritantes.

Esta historiografia e conclusões lógicas sustentam a cobertura contemporânea do Afeganistão. Preguiçosamente baseada numa salada insossa de tropos orientalistas e terminologia hegeliana obsoleta, são frequentemente usados os binários onipresentes de “atraso” versus “progresso”. O discurso se recusa a abordar as tensões não-resolvidas que contribuem para o aparentemente ciclo sem fim afegão de ir e vir a cada mudança de governo induzida pela força militar, entre revolução e contrarrevolução, forças progressistas contra forças reacionárias, o “bom” contra o “mau”. Assim, o discurso contemporâneo contribuiu diretamente para a guerra. Heróis “moderados” arbitrariamente definidos foram celebrizados contra vilões religiosos, identificados constantemente com consequências mortais a centenas de homens afegãos, com barbas e turbantes.

Em meio a tudo isso, fundamentalmente ignorada é a desconfortável realidade de que o Afeganistão sob o Talibã não foi para “trás”, da mesma maneira que, apesar de afirmações apaixonadas ao contrário, ele nunca “progrediu” realmente durante as duas décadas da ocupação americana. O testemunho flagrante disto é o Afeganistão ser balançado de um lado para o outro, continuamente esmagado pelos polos opostos dos ideólogos e pelos reacionários que eles geram.

Tarzi estava desafiando diretamente um entendimento da educação existente há séculos. Inerente à educação preferida de Tarzi, estava a distinção secular-religiosa; uma distinção que anátema aos currículos islâmicos clássicos, prevalentes há séculos no Afeganistão e em todo o mundo islâmico [9]. Este estilo de educação não era apenas prevalente, como persiste nos dias atuais. Akif Muhajir, o porta-voz do Ministério do Vício e da Virtude que entrevistei, estudou na infame madraça paquistanesa Darul Uloom Haqqania. Seu currículo incorporava lógica e filosofia, além de estudos do Alcorão e dos Hádices, sob o guarda-chuva mais amplo da educação religiosa.

“O Islam recusa”, afirmava admiradamente o então Príncipe de Gales e atual Rei Charles III em 1993, “a separar o homem e a natureza, a religião e a ciência, a mente e a matéria, e tem preservado uma visão metafísica e unificada de nós meses e do [nosso] mundo”. Para sua surpresa, provável desconforto e sem falta de ironia, concordando com Charles sobre a falta de distinção religiosa-secular no Islã Clássico, estaria ninguém menos que o presidente do Supremo Tribunal Afegão e o ideólogo do Talibã, Abdul Hakim Haqqani [10].

Era previsível que haveria oposição a Tarzi e à educação moderna; tornou-se inevitável com o extremo das tentativas de implementação. Quando o pupilo e genro de Tarzi, Amanullah, assumiu o trono, ele buscou transformar seu empobrecido reino num estado moderno. Inicialmente cuidadoso para se alinhar à ortodoxia islâmica, Amanullah chegou a conquistar o apoio de alguns ulemás influentes para fazer as reformas. Ele abriu a primeira escola para garotas do país e, em 1924, tentou promulgar sua primeira constituição codificada. Apesar do forte apoio religioso, Amanullah ainda estava sob crescente pressão doméstica; pressão que ele buscou compensar indo até o Mufti Deobandi de Delhi, Kifayatullah, pedindo uma fatwa (um édito legal) sobre a educação das garotas. Amanullah era, explicou o Mufti, o governante islâmico e a “sombra de Deus na Terra”: obrigado a garantir que as normas religiosas sobre a segregação de gênero fossem mantidas e que a “imoralidade” fosse evitada. Além disso, o Mufti escreveu, a modernidade necessitava de uma ampliação da educação, e a busca pelo “conhecimento é uma necessidade da alma humana, seja masculina, seja feminina”. Qualquer justificativa, como tal, “a diferenciação entre homens e mulheres a este respeito não existe na Sharia” [11].

A estrangeirice da educação e o alto modernismo de Amanullah

Em 1928, Amanullah estava frustrado com sua falta de progresso, pouco se importando com as sensibilidades religiosas. Ele anunciou medidas abrangentes. A coeducação seria obrigatória para as crianças e escolas administradas por estrangeiros seriam abertas em todas as províncias. Os afegãos, incluindo as meninas, seriam enviados para estudar fora. Isso era parte de um pacote mais amplo de reformas. Estas incluíam a mudança do feriado oficial islâmico da sexta-feira para a quinta-feira. Doravante, os cabulis usariam roupas europeias. A poligamia seria abolida [12]. Mesmo Tarzi, o antigo modernista, ficou horrorizado. A mensagem derivada pelos oponentes de Amanullah era clara: a educação moderna formava parte de uma cruzada mais ampla contra tudo que era afegão, fosse o Islã, a segregação de gênero e até mesmo o vestuário.

Demandas foram eventualmente apresentadas a Amanullah. Ele deveria se divorciar de sua esposa: uma força motriz por trás de suas reformas e que foi fotografada sem hijab na Europa. Ele deveria reinstituir o véu e acabar com o banimento sobre a poligamia. Numa surpreendente demonstração de quão politizada tinha se tornado a educação das garotas, foi-lhe exigido que fechasse todas as escolas para garotas e chamasse de volta todas as mulheres enviadas ao estrangeiro para estudar [13]. Os juristas islâmicos postularam, durante séculos, que o sultão (governante) era a sombra de Deus na Terra. Isso, no entanto, dependia de um governo em conformidade com a Sharia por parte do sultão. Através de reformas anti-islâmicas, Amanullah ultrapassou sua prerrogativa, perdendo sua legitimidade islâmica e, em breve, seu próprio trono. Deposto e a morrer em exílio em 1960, o legado de Amanullah, enraizado na sua compreensão idiota de modernidade, justificou aqueles que desde o início alertaram contra a educação moderna. Projetando uma longa sombra, ele assombra o Afeganistão até os dias atuais.

As tentativas de Amanullah de obrigar a escolarização foram uma “receita para a imoralidade e promiscuidade” de inspiração ocidental”. Essa, pelo menos, era a visão do ex-governador de Cabul, Neda Muhammad Nadeem, num vídeo que se tornou viral no qual Nadeem criticava Amanullah [14]. Fontes do Talibã negaram a autenticidade da conta que compartilhou o vídeo, que dizia ser a conta oficial de Nadeem, mas o vídeo permaneceu alarmante. Nadeem não era apenas um Talib sênior, ele também era Shaykh al-Hadith, sua influência certamente é maior por causa de suas credenciais.

Mais preocupante, no entanto, foi a recente nomeação de Nadeem como Ministério da Educação Superior pelo próprio Amir Hebatullah, e o que isso pode significar para a educação como um todo. Outros vídeos mostraram Nadeem, após sua nomeação como ministro, falando sobre construir uma ponte sobre “o vão entre a escola e a madraça”, ecoando a objeção de Haqqani à distinção secular-religiosa. Não havia, e não é surpresa, uma explicação sobre como o banimento de escolas secundárias e universidades construiria uma ponte sobre o vão escola-madraça. Ou porque isto foi aplicado a apenas um gênero.

A atitude de Amanullah lembrava o que James Scott chamou de “alto modernismo”: usar o estado na reorganização de cima para baixo da sociedade para alcançar progresso material [16]. Amanullah foi, talvez, o primeiro a personificar e tentar implementar este zeitgeist, mas certamente não seria, com o passar das décadas, o último.

Em 1978, pouco menos de meio século após a derrubada de Amanullah, o presidente Daud e dezessete familiares foram mortos num golpe comunista. Logo, o Afeganistão seria inserido numa guerra de quarenta anos. Os perpetradores, com Nur Muhammad Taraki na sua vanguarda, se viam como herdeiros da cruzada de Amanullah pela modernidade. Mesmo seu golpe foi apresentado como a correção de um erro histórico; celebrando o fim de uma dinastia que usurpou o trono de Amanullah. Como Amanullah, as reformas de Taraki tentaram reduzir a poligamia e foram mais longe: prenderam e executaram imames em massa. Onde Amanullah uma vez ridicularizou os ulemás como supersticiosos e exploradores [17], e falou que “descartar velhas ideias e costumes ultrapassados [era] o grande segredo do sucesso” [18], Taraki afirmou:

“Respeitamos os princípios do Islã..., mas a religião não pode ser usada por aqueles que querem sabotar o progresso. Queremos limpar o Islã no Afeganistão do lastro e da sujidade das más tradições, da superstição e das crenças erradas. Assim, teremos um Islã progressista, moderno e puro” [19].

Amanullah e Taraki, da mesma forma, compartilhavam seu alto modernismo fundamental, necessitando de reduzir a religião ao seu tamanho. Ambos castigaram seus oponentes religiosos: egoístas, supersticiosos ou exploradores. O alto modernismo de Taraki foi mais longe que o de Amanullah; apoiado por uma maior capacidade e disposição para a brutalidade, e subordinando o Afeganistão ao poder ideológico e militar da União Soviética, mesmo assim, era alto modernismo. Toda ação tem uma reação e cada fase do alto modernismo gera uma contraparte religiosa, com o Talibã sendo a última iteração.

Amanullah foi deposto por seu antigo soldado: um bandido iletrado e agora autoproclamado “Servo da Religião do Profeta”, Habibullah Kalakani. Kalakani rapidamente fechou todas as escolas, impôs restrições sobre as mulheres deixarem seus lares e, num flagrante testemunho de que as reformas de Amanullah foram contaminadas com a estrangeirice, anunciou um banimento sobre o ensinamento “das línguas dos estrangeiros e dos kuffar (infiéis)”. Desconfortavelmente para alguns, Kalakani era um tajique, contradizendo a visão de que a oposição à educação estava enraizada nas normas culturais dos pashtuns. Ele foi deposto nove meses depois, em 1929, por um membro do clã de Amanullah: Nader Khan [20].

 Nader era, apesar de cauteloso, um modernizador. Ele, no entanto, discordava do alto modernismo de Amanullah. Forçar novas ideias sobre a sociedade não era prerrogativa governamental, nem era necessário. O Islã e o progresso poderiam, afirmou, “marchar lado a lado”, visto que o Islã “não proibia constitucionalmente o progresso”. Tais declarações podem ter sido úteis; seu reinado nasceu numa aliança com um clero ansioso por entronizar um aliado sóbrio. Mesmo assim, Nader não negou sua crença na modernização. Foi, na verdade, um remédio; um remédio que Amanullah administrou numa dosagem que foi “dez vezes mais forte que o prescrito pelo médico” [21]. Contudo, desconfiado da influência clerical e pelo desdém generalizado pela educação, fruto do erraticismo de Amanullah, Nader seguiu uma linha cautelosa. A abordagem dele e de seus sucessores foi gradual, mas, em retrospectiva, ainda não tinha sido replicada com sucesso.

Fazendo um delicado ato de equilíbrio, Nader trocou a modernização limitada pela deferência às sensibilidades religiosas ainda inflamadas por Amanullah. Ele foi bem-sucedido em tornar a educação primária obrigatória. Estrangeiros ainda poderiam ensinar nas escolas afegãs. Eles não poderiam mais, no entanto, abrir novas escolas ou dirigi-las. A educação deveria estar sob firme controle governamental, assegurando sua aderência aos princípios islâmicos, determinado por um corpo de clérigos apontados por Nader [22]. Simultaneamente, a primeira polícia da moralidade foi instituída e, ao menos inicialmente, as escolas para meninas permaneceram fechadas. As garotas foram proibidas de estudar no estrangeiro. Tal qual Amanullah, antes dele, um erudito indiano escreveu para Nader. Mawlana Najaf Ali, antigo professor de Amanullah, implorou a Nader para abrir as escolas para meninas [23]. A história, por adágio, repete a si mesma. Quando se trata do Afeganistão, a situação é dupla e deprimente. Em 2022, outro sábio do subcontinente indiano, Mufti Taqi Usmani, apelou a outro governo afegão que abrisse as escolas das meninas [24]. Seu apelo não foi apenas ignorado, como as mulheres também foram excluídas da universidade.

Efetivo, mas brutalmente autoritário, o reinado de Nader terminou prematuramente, quando foi assassinado em 1933. No entanto, ele e seus sucessores puderam se orgulhar do sucesso em sua abordagem consultiva em relação aos conservadores do país. A primeira escola médica do Afeganistão, que se tornaria a Universidade de Cabul, foi estabelecida em 1932. As próximas décadas viram um gradual retorno às iniciativas transformadas em tabu pela associação com as reformas anti-islâmicas de Amanullah. As escolas de meninas, a princípio secretamente, foram reabertas e universidades foram criadas; ciências religiosas e seculares eram ensinadas separadamente nelas. A construção do estado pode ser um empreendimento perigoso no meio rural; um enfoque seguro na infraestrutura garantiu uma expansão lenta, mas prudente, dos mandatos do governo.

Havia, no entanto, um problema. Estrangeiros, principalmente muçulmanos indianos e turcos, foram fortemente utilizados desde o início da escolaridade. Conforme as décadas passaram e a antipatia para com a educação parecia diminuir, uma falta crônica de professores garantiu que a educação permanecesse subcontratada e insuficientemente afegã. O alto escalão das escolas permaneceu estrangeiro. Havia a Universidade Politécnica de Cabul de Engenharia, construída pelos soviéticos, a faculdade alemã Nejat, da época de Amanullah, os liceus franceses Istiqlal e Malalai (para meninas) e a faculdade britânica Ghazi, para citar alguns. O departamento de teologia da Universidade estava intimamente ligado ao al-Azhar do Egito. Em meio à Guerra Fria, oficiais militares foram cada vez mais à União Soviética para receber treinamento. As consequências se tornaram claras no golpe comunista de 1978.

Surge Haqqani

É por isso que, ao menos de acordo com o Chefe de Justiça do Talibã, as coisas deram errado. “O aprofundamento excessivo nas ciências modernas destrói a crença [religiosa] e os atos de adoração”, declara Haqqani. As primeiras gerações islâmicas, mantém Haqqani, alcançaram o sucesso mundano apenas através da priorização do Alcorão e da Sunnah; uma priorização que foi perdida e levou ao declínio da erudição religiosa que, ao longo dos séculos, esteve em plena ascensão. Haqqani culpou al-Ma’mun, o notório califa abássida mutazilita do século IX, como sendo o primeiro a enfatizar demais as ciências mundanas. A divisão moderna secular-religiosa elevou essa despriorização a novos patamares ao relegar a religião oficialmente. Isto foi amplamente responsável pelo enfraquecimento do Islã e, especificamente, pela “revolução contra o governo do Afeganistão” pelos comunistas em 1978. Aludindo ao papel descomunal do Ocidente na educação, Haqqani critica as escolas como locais onde até “os uniformes são europeus”.

A tirada de Haqqani contra a educação não surpreende. As escolas, por causa de sua estrangeirice, têm servido há muito tempo como incubadoras de ideias estrangeiras e consequente agitação política. Isso volta ao período de estabelecimento da Habibiyya; ela rapidamente fez surgir um movimento constitucionalista. Em meados do século XX, na Guerra Fria, as escolas foram canal para uma série de ideias estrangeiras que se infiltravam no país. A principal delas era o comunismo.

Como presidente, Hafizullah Amin comandou um ápice sem precedentes de terror de Estado, contra o qual até seus aliados soviéticos o alertaram. Seu passado, no entanto, era bem menos violento. Amin era professor de profissão; ele ensinou na Faculdade de Educação e Ensino na Universidade de Cabul, serviu como diretor na Dar-ul Mu’alimeen (Escola de Formação de Professores), nas escolas Ibn Sina e no Instituto de Treinamento de Professores recém-criado pelo governo. De acordo com sua biografia, como professor, ele se ocupou em “esclarecer o entendimento sociopolítico e fazer com que o movimento democrático entre os estudantes e professores fosse muito poderoso”. Muito ambicioso para se contentar com a radicalização de meros estudantes, Amin tinha como objetivo doutrinar seus professores [25].

O comunismo não era a única ideologia a se infiltrar no país, mas a beligerância dos seus adeptos para com a religião tornou-a ainda mais impressionante. Muitos eram de origem rural, quase todos eram estrangeiros ou educados pelo Estado. Taraki foi exposto inicialmente ao marxismo na Índia Britânica. Logo confrontado pela Revolta de Herat após seu golpe de 1978, Taraki implorou ao Kremlin por apoio militar. Ele podia confiar, confessou, “apenas [nos] estudantes dos liceus, alunos das turmas mais avançadas e num pequeno número de trabalhadores” [26]. Sua confissão sublinhou simultaneamente a impopularidade comunista, junto à importância da educação estatal na radicalização para o comunismo. Amin, que sucedeu Taraki, sufocando-o, estudou nos EUA. Após matar Amin, os soviéticos instalaram Babrak Karmal na presidência: um formado da faculdade alemã Nejat e da Universidade de Cabul, patrocinada por estrangeiros. O sucessor de Karmal, Dr. Najib, era um formado da Faculdade de Medicina da Universidade de Cabul.

Muitos, entretanto, continuaram convencidos com a educação moderna. Nas cidades, mas também no interior, a educação não era vista apenas como parte de um dever nacional para modernizar o país. Também era uma obrigação religiosa baseada na injunção corânica para “ler”. De acordo com um ditado popularmente atribuído ao Profeta Muhammad, era parte de uma ordem aos muçulmanos para buscar conhecimento mesmo que fosse tão longe quanto na China.

Afirmar que a maioria dos afegãos discorda disso seria absurdo. Afegãos o suficiente, no entanto, discordava. Esta realidade se tornou inegável visto que o ceticismo em relação à educação sobreviveu e surgiu décadas mais tarde, para ser praticamente implementada sob o primeiro e agora segundo emirados do Talibã. A ascensão do comunismo coincidiu com uma aplicação mais frouxa das normas islâmicas nas cidades. Uma era dourada para alguns; para outros, apenas aprofundou a conceitualização da modernidade e suas escolas como formas de influência anti-islâmica.

Agora imortalizado em árabe clássico em seu livro, essa conceitualização é sumarizada por Haqqani em termos sombrios. Com a religião relegada a uma nota de rodapé nos currículos seculares, permeada com uma atmosfera mais abrangente de “imoralidade e irreligião” e mistura de gênero desenfreada, as escolas estão, Haqqani afirma, “entre as maiores barreiras entre os muçulmanos e o Islã, e os grandes preventores do ensino do Alcorão, das regras da Sharia e da retidão moral dos muçulmanos”.

A antipatia pré-Talibã em relação à educação foi lembrada pelo proeminente historiador afegão Muhammad Hassan Kakar. Um ancião tribal de Paktia nos anos 1980 narrou a Kakar como Cabul, décadas antes, aprovou planos para a construção local de estradas e escolas. Os habitantes locais geralmente concordavam, com exceção dos anciãos do vale: convencidos por um homem santo a se opor aos planos. Décadas mais tarde, nos anos 1980, os outros vales estavam sujeitos à destruição de seus próprios filhos que se tornaram comunistas graças às escolas. Sem escolas e sem estradas, seu vale foi o único poupado da violência. O santo estava certo. “Pessoas comuns destruíram escolas desde a fundação. As pessoas instruídas ficaram desacreditadas e os mulás se tornaram governantes incomparáveis” [27].

Os pais fundadores do Talibã, portanto, cresceram num meio subsumido nas mesmas atitudes. De acordo com um oficial do Talibã, o antigo líder do movimento, Mullah Akhtar Muhammad Mansour, foi para a escola em Maiwand, em Qandahar. Um talento prodígio, Mansour logo foi notado por seus professores. Como é de costume para as crianças com essa inteligência, eles recomendaram que o jovem Mansour fosse enviado a Cabul para estudar no ensino superior. Sua mãe, no entanto, ficou horrorizada. A apostasia, como via, era inevitável em Cabul. “Preferiria”, proclamou, “que ele morresse em minha frente”.

Mansour continuou, no que diz respeito à tecnologia, aos meios de comunicação e à educação, como o líder mais permissivo do movimento. Seus antecessores do Talibã, sucessores e sua própria mãe, no entanto, compartilhavam uma ambivalência em relação à educação. Mansour foi morto, mais tarde, num ataque com drones em 2016 pelos EUA. O único líder do Talibã que os EUA conseguiram matar foi aquele que morreria às suas mãos para ser aquele que considerariam mais agradável. A ironia.

Na ocupação soviética, a hostilidade em relação à educação endureceu ainda mais. A educação foi identificada, desde Amin, como o motor da engenharia social na criação de uma utopia marxista. Os currículos, repletos de propaganda comunista, eram o combustível. Deliberadamente “destituído de estudos islâmicos e cultura afegã”, esses currículos, de acordo com a Dra. Zuhra Faizi, provocou oposição em relação à educação estatal mesmo nos centros urbanos, incluindo Cabul. Já não estava mais confinado ao interior que, de outra forma, poderia ser considerada atrasada. A oposição a estes currículos era tão amarga que até os refugiados afegãos no Paquistão eram resistentes à educação. As escolas eram sinônimo de propaganda sacrílega [28].

Contudo, não foi apenas Amanullah ou o comunismo soviético os culpados pela politização da educação. Do outro lado da Linha Durand, crianças afegãs no Paquistão cresciam numa dieta curricular de manuais produzidos pelos americanos que exaltavam as virtudes da jihad. Era um paradoxo que os EUA, em sua posterior ocupação do Afeganistão, nunca conseguiram resolver.

A ocupação americana – alimentando o ciclo

A ocupação do Afeganistão foi parte dos objetivos estratégicos mais abrangentes da Guerra ao Terror. O principal deles era cultivar um Islã globalmente neutralizado que, pelo menos, não desafiasse os interesses da política externa americana. Em 2004, o cientista político Cheryl Bernard, escreveu um artigo para a Rand Corporation promovendo o que ela chamou de “Islã Democrático Civil”.

Dividindo os muçulmanos em categorias, Bernard sugeriu promover o sufismo como a variante pacífica do Islã [29]. Os EUA, aconselhou, deveriam se aliar com os “tradicionalistas” contra seu principal adversário: os “fundamentalistas”. Este era um termo genérico que incluía o Talibã, que eram os “fundamentalistas radicais”. Isso não foi, contudo, um sinal da aprovação de Bernard aos tradicionalistas; eles permaneceram “desconfiados da integração social e econômica das mulheres” e “desconfiados da educação moderna e secular” [30]. Por sua vez, para partir o monopólio tradicionalista sobre a educação religiosa, Bernard propôs o apoio aos “modernistas”. Isso poderia ser feito de várias formas, “estudiosos modernistas” poderiam ser encorajados a “escrever livros didáticos e desenvolver currículos” [31], bem como incorporar “visões [modernistas] no currículo da educação islâmica” [31]. A ênfase de Bernard sobre os currículos era prolífica; os currículos também poderiam “facilitar e encorajar a consciência da história e da cultura pré e não-islâmica” [33].

No mesmo ano das recomendações de Bernard, o Presidente Bush fez seu Estado da União de 2004 [34]. O Afeganistão, anunciou, foi um sucesso. Tinha acabado de promulgar uma nova e democrática constituição. “Os meninos e meninas do Afeganistão estão de volta à escola”, ostentou Bush. “Incursões agressivas contra os membros sobreviventes do Talibã” estavam em andamento e “homens e mulheres estão construindo uma nação livre e orgulhosa, lutando contra o terror”. Com “terror”, a referência ao Talibã era óbvia. Declarações semelhantes feitas por chefes de estado ocidentais e seus clientes afegãos se espalharam nas duas décadas de ocupação americana. O objetivo comum era apelar ao público ocidental, legitimando e mantendo o apoio público ao gasto de milhares de milhões numa ocupação e ao apetite insaciável por dólares estrangeiros entre a elite afegã instalada no poder. Boas novas chegavam; foi prometido que uma nova geração de jovens e “educados” afegãos viraria a página de um capítulo arbitrariamente definido como de extremismo religioso.

A educação e os direitos das mulheres foram, portanto, os pilares legitimadores e reforçadores da invasão e ocupação do Afeganistão. Felizmente inconscientes ou extremamente indiferentes, as afirmações, seja de Bush, seja de Bernard, apenas justificaram a suspeita de que a educação era o Cavalo de Troia da Ocidentalização. Repetidamente apresentar a educação como ingrediente integral da Guerra ao Terror teve como resultado um repetido endosso a Haqqani; a educação objetivava castrar o Islã enquanto promovia um entendimento de direitos das mulheres que entravam em choque com o papel doméstico das mulheres que ele acreditava ser divinamente ordenado. As escolas modernas eram, no fim das contas, barreiras entre o Islã e os muçulmanos; barreiras concebidas especificamente para “desviar [os muçulmanos] da religião de Deus”. Os falcões do Talibã, com a educação e as mulheres constantemente sendo usadas contra si, estavam escutando.

O ceticismo em relação às escolas públicas, portanto, persistiu durante a ocupação americana. As calúnias cada vez mais comuns nos últimos anos da ocupação apenas apontavam para um ressentimento duradouro em relação à educação ocidental. “Tommy” referia-se ironicamente a muitos jovens afegãos, educados no Ocidente, que usavam terno e eram fluentes em inglês, servindo ao governo ou em ONGs; eles estavam tão distantes que, ainda por cima, recebiam um nome ocidental adequado. “Fullbrighter” zombava daqueles que se beneficiavam da famosa bolsa de estudo dos EUA. Os dois termos, de acordo com seus usuários, se referiam a afegãos que, em virtude de sua educação ocidental, perderam sua afeganidade, do qual o Islã era o principal constituinte. “Um mujahid será graduado duma madraça”, supostamente disse Amir Hebatullah. Referindo-se ao antigo presidente Karzai, ele adicionou, “[mas] um Karzai será graduado duma escola” [35].

Ganhos modestos, no entanto, foram feitos. Um currículo nacional numa foi codificado na tentativa de aderir aos princípios islâmicos. O acesso às escolas foi ampliado no país, especialmente nas zonas urbanas. No entanto, sobretudo nas zonas rurais afetadas pela guerra, Dra. Faizi destaca que escolas comunitárias preencheram o vazio do estado. Elas desfrutaram de grande confiança local e costumavam ter como funcionários pessoas do local, que trabalhavam como professores. Isso se deu enquanto a desconfiança em relação às escolas públicas persistia. “Para muitos”, disse Dra. Fauzi para mim, “as escolas públicas continuam representando os esforços de doutrinação do estado”.

Encontrei um exemplo disto em Zharey, Qandahar. A única escola para meninas do distrito se encontra em ruínas. Locais, especialmente membros do Talibã, constantemente me disseram como a escola foi usada como posto militar do regime nos últimos anos da república. As cicatrizes do uso militar eram evidentes. O perímetro externo da escola estava delineado, agora, por paredes desmoronadas. Sob os escombros das paredes, em meio a papeis rasgados, havia sacos de areia em contêineres de metal aramado. A escola em Zharey não representava os esforços de doutrinação do estado; ela sinonimizava a doutrinação com a maquinaria militar.

Longe das respostas polidas dadas pelo porta-voz de Cabul, foi em Zharey que o equívoco escolar com a influência anti-islâmica se tornou aparente. Um antigo talibã, agora agricultor de lavanda, insistiu-me que não tinha qualquer objeção às meninas, incluindo sua filha, frequentarem a escola. Desde que, adicionou, isso não entrasse em conflito com a Shariah. Ele não elaborou sobre como ou por que as escolas entrariam em conflito com a Shariah. Ele, no entanto, se referiu ao clamor internacional causado pelo encerramento das escolas. “Esta questão [das escolas para meninas]”, argumentou, “está sendo usado para minar o Islã”. Ele não estava sozinho; a antipatia para com a educação estava presente nos mais altos escalões do Talibã. Sustentado pelo que agora é amplamente reportado como sendo uma minoria, essa minoria é influente o suficiente para paralisar o país mais uma vez.

O primeiro e segundo emirados do Talibã possuíam restrições sobre a educação moderna, especialmente para meninas. O Afeganistão parece ter dado uma volta completa, desde que a educação moderna foi banida por Kalakani em 1929. No entanto, a atitude de Haqqani em relação à educação não é de uma hostilidade absoluta. A educação moderna, admite, é uma necessidade; não há dúvidas de que trazia benefícios mundanos, ou, como Haqqani descreve, “materiais [e] finitos”. Estes benefícios iam além do travar guerras em defesa do Islã; Haqqani aceita que o bem-estar da sociedade era dependente do estudo de disciplinas como agricultura, química, dentre outros. “Nós não”, tenta esclarecer, “negamos a importância da educação moderna”.

Em 2022, nem mesmo o Talibã é capaz de negar, pelo menos em palavras, a importância da educação moderna. Progressos, embora lentos, foram feitos no paradigma afegão. Se esse progresso é suficiente, essa é uma discussão à parte; uma que deve destacar o fato de que o Afeganistão nunca teve o luxo de evoluir e resolver suas diferenças em seus próprios termos. A evolução local foi impedida pela aliança transtemporal de Amanullah, os ideólogos que ele inspirou e os milhares de soldados estrangeiros que os instalaram no poder. O destino não concedeu a Kalakani o luxo do tempo, mas certamente o fez para o Talibã.

Mesmo assim, permanece importante enquadrar a admissão de Haqqani, talvez motivo de algum alívio, em sua posição mais ampla. “Um muçulmano”, através do serviço ao Islã, “usará a educação moderna tanto para esta vida [quanto] para a Outra”. Isto está em contraste com o kafir (infiel); desprovido da salvação na Outra Vida, ele só encontraria utilidade na educação moderna “apenas para esta vida”. Seria apenas lógico, portanto, para um governo islâmico, abandonar o taqleed (imitação cega) do Ocidente em sua distinção secular-religiosa: a verdadeira causa do declínio do mundo islâmico. “É importante que um governo islâmico”, elucida Haqqani, “não abandone a educação secular, mas o incorpore numa educação religiosa mais ampla”.

O caminho a seguir

Tarefas assustadoras confrontaram o Talibã após sua tomada do poder: governar um país devastado pela guerra, distribuir os proverbiais espólios de guerra entre dezenas de milhares de combatentes endurecidos, lidar com os interesses conflitantes de sua base, dos diversos blocos do país e do mundo em geral. Todos, em diferentes graus, estão desiludidos. A anistia geral estendida ao pessoal do regime anterior coincidiu com uma maturidade limitada, mas maior na governança, uma ênfase na diplomacia e uma menor aplicação da propriedade religiosa. A implementação dos éditos (ou “sugestões) do Ministério do Vício e da Virtude, com o foco inexorável nas mulheres, é medíocre. Um toque geral mais suave, mas um governo cujas contradições, imprevisibilidade e volatilidade apontam para fricções intrapartidárias e uma lamentável incompetência.

A crescente assertividade dos falcões de Qandahar foi sinalizada pelos crescentes “conselhos” do Ministério do Vício e da Virtude após o fechamento de março. Com Amir Hebatullah no comando, o impulso, pareceu, era carimbar a autoridade central sobre uma insurgência até então descentralizada. Em agosto de 2021, falei para a Al Jazeera que embora as circunstâncias fossem diferentes, a “interpretação teórica da Shariah pelo Talibã permaneceria, em grande parte, a mesma dos anos 1990” [36]. Esta interpretação inalterada e a crescente assertividade de Qandahar apareceram na reimplementação das penas ta’zir (discricionárias), incluindo apedrejamento, flagelação e amputação par crimes específicos. Essas penas, no entanto, não são únicas ao Talibã, nem ao Afeganistão, e dificilmente provocarão oposição dentro do país.

Isso não é verdadeiro para a educação. Críticas contundentes surgiram quase imediatamente após o fechamento das escolas, inclusive de analistas que, de outra forma, eram a favor do Talibã. O banimento de ontem sobre as universidades só exacerbou o ódio. A política educacional parece uma área única no qual o criticismo não justifica repressão, mesmo em meio à supressão calculada de críticas em outros lugares. Na verdade, é difícil ver como a dissidência poderia ser sufocada quando expressada cada vez mais publicamente pelas próprias figuras do Talibã. O Ministro do Interior, Sirajuddin Haqqani, prometeu repetidamente e publicamente a reabertura das escolas, aumentando a aposta e desafiando indiretamente os defensores do fechamento. Em certo ponto, Zabihullah Mujahid, após intenso questionamento, respondeu sem rodeios que a proibição não foi uma decisão sua. Se tivesse sido, o fechamento nunca teria acontecido.

“A educação [moderna] é obrigatória para homens e mulheres”, declarou recentemente o Vice-Ministro das Relações Exteriores, Stanakzai. Seu colega de gabinete, o Ministro do Vício e da Virtude, sutilmente o desafiou; a educação era, destacou, realmente permissível. A implicação era clara; ser permissível não significava ser obrigatória. Obrigatório, adicionou, era a obediência ao Amir: autorizado a suspender até mesmo o que é permissível [37].

Justaposta com promessas otimistas outrora feitas em Doha, a política talibã em Cabul atraiu acusações de duplicidade flagrante e impressionante a nível nacional e internacional. Desde fatwas de seminários religiosos de Herat, até petições tribais de Paktika, a pressão interna sobre a proibição das escolas tem sido implacável. Com o banimento estendido às universidades, ainda em formação está uma avalanche crescente de condenação internacional, medidas punitivas e mais indignação interna. Fissuras mais profundas dentro do Talibã são inevitáveis; apenas sua extensão que há de ser determinada.

As soluções, entretanto, estão em casa. Isso é especialmente pertinente para os políticos afegãos de ontem, cuja maturação só foi possível apenas graças a uma ocupação que os engordou com dólares estrangeiros. Tentar um ressurgimento, aproveitando-se do ódio pelo banimento já não é viável, se é que algum dia foi. Problemas enraizados ou exacerbados pela intervenção estrangeira não podem ser resolvidos por mais intervenções estrangeiras. Décadas de politização da educação teriam fornecido a panaceia necessária, se esse fosse o caso.

A internacionalização dos impasses afegãos garante duas coisas. A discussão se torna cada vez mais distante do Afeganistão e as iniciativas ficam sujeitas à acusação de serem apoiadas por forças estrangeiras e, portanto, maculadas. Uma discussão sobre um banimento de gênero não pode e não será resolvido por países internamentos divididos sobre o que constitui o gênero biológico, ou se tal coisa sequer existe.

Reorientar a discussão para que esteja centrada ao redor das sensibilidades afegãs, no entanto, pode alavancar a pressão existente em todo o espectro político afegão, incluindo os dissidentes talibãs. Pressão que poderia, de dentro, ser exercida contra aqueles que estão cegos pela arrogância, pela ideologia e pela paranoia; condenando o Afeganistão às divisões internas e ao isolamento internacional.

Haqqani não se opõe à participação das garotas nas escolas ou nas universidades; sua antipatia é com ideia fundamental da escola e da universidade em si. Quando ou se algum deles será reaberto para meninas é incerto. Essa imprecisão, de acordo com a sua crítica epistemológica mais ampla à educação secular, aplica-se igualmente à possibilidade de fechamento para os rapazes. Assumindo que tal coisa alguma vez se concretizou, a forma prática de um currículo aprovado por Haqqani que atrase o relógio para a modernidade é lamentavelmente não especificada.

Uma questão, acima de tudo, é se o Afeganistão ou mesmo o Talibã podem se permitir ser mantidos reféns de críticas filosoficamente abstratas à modernidade. Uma crise econômica e uma escassez crônica de recursos tornariam o funcionamento do sistema educacional anterior bastante desafiante. Criar um sistema funcional que, em essência, substitua a universidade com a madraça, é outra tarefa.

Uma coisa é certa: quer se trate da educação ou do governo de forma mais ampla, as questões sobre o Talibã não irão parar.

Notas

1 – ‌“Taliban Spokesperson Claims Suspension of Schools for Afghan Girls ‘Temporary,’” Republic World, July 24, 2022. https://www.republicworld.com/world-news/rest-of-the-world-news/taliban-spokesperson-claims-suspension-of-schools-for-afghan-girls-temporary-articleshow.html

2 – “Afghanistan: Taliban closes universities to women,” BBC World, December 20, 2022. https://www.bbc.co.uk/news/world-asia-64045497

3 – Bush, George W., President Outlines War Effort. (Remarks by the President to the George C. Marshall ROTC Award Seminar on National Security Cameron Hall, Virginia Institute, April 17, 2022). Accessed at https://georgewbush-whitehouse.archives.gov/news/releases/2002/04/20020417-1.html

4 – Yalda Hakim (@BBCYalda Hakim), “Where are Afghan men? @ZahraJoya founder of @RukhshanaMedia says “Afghan men are not supporting Afghan women in this critical time. It’s a big shame” Zahra one of the @BBC100women discusses dramatic changes to the lives of Afghan women since the Taliban swept to power,” Twitter video, December 6 2022,

5 – Hallaq, Wael, Wael B. Hallaq on Islamic Law and Human Rights (Interview by Andreas Mathias. Daily Philosophy. September 7, 2021). Accessed at https://daily-philosophy.com/interview-wael-hallaq-islamic-law/.

6 – Ahmed-Waleed Kakar, In Afghanistan, Vice and Virtue Are Front and Center, New Lines Magazine, April 25 2022. Accessed at https://newlinesmag.com/reportage/in-afghanistan-vice-and-virtue-are-front-and-center/.

7 – Gregorian, The Emergence of Modern Afghanistan: Politics of Reform and Modernization, 1880-1946, (Stanford University Press: Stanford, 1969), 184

8 – Ibid, 185

9 – Karmali, Hamza, The Madrasa Curriculum in Context, (Abu Dhabi, Kalam Research and Media, 2017)

10 – Prince Charles, HRH,. Islam and the West. (A speech by HRH The Prince of Wales titled “Islam and the West” Presented at the Oxford Centre for Islamic Studies , The Sheldonian Theatre, Oxford, October 27, 1993). Accessed at https://www.princeofwales.gov.uk/speech/speech-hrh-prince-wales-titled-islam-and-west-oxford-centre-islamic-studies-sheldonian.

11 – Kifayatullah, Mufti, Kifayat Ul-Mufti Vol. 2, (Dar al-Isha’ah: Karachi, 2001) 55-58

12 – S.K. Nawid, Religious response to social change in Afghanistan, 1919-29: King Aman-Allah and the Afghan Ulama, (Mazda Publ, Costa Mesa, 1999), 140

13 – Rhea Talley Stewart, Fire in Afghanistan, 1914 – 1929: Faith, Hope and the British Empire, (New York: Doubleday, 1973), 269

14 – Neda Muhammad Nadeem (@NedaMohammadNad), د شیخ الحدیث ندا محمد ندیم د وینا مهم ټکي: -دا چې وخت کم دی نو د بسم الله پر ځای به ٧٨٦ ووایم – امان الله خان د ښځو د مکتبونو، عیاشۍ او فحاشۍ نسخه راوړه – امان الله خان ویل د جامعې فساد تاسې علما یاست – ظاهر شاه هم غوښتل ښځې مکتبونو ته ولیږي خو مسلمان ولس یې مخالفت وکړ., Twitter video, December 1 2022. – Taliban sources have denied the account being the real account of the Minister.

15 – Neda Muhammad Nadeem (@NedaMohammadNad), رسانه های مغرض دیروز سخنان من را تحريف نمودند که گویا مخالف تحصیلات هستم؛ دشمن کوشش کرده که بین مدرسه و پوهنتون فاصله ایجاد کند، چهل سال گذشته مردم ما از شاگردان مکتب و پوهنتون بسیار تکلیف دیدن چون ذهنیت شان علیه دین تربیت شده بود، اما ما می‌خواهیم این فاصله را از بین ببریم. Twitter video, December 2 2022. – Taliban sources have denied the account being the real account of the Minister.

16 – James C. Scott, Seeing like a State: How Certain Schemes to Improve the Human Condition Have Failed. (Yale University Press, 1998)

17 – 8 – S.K. Nawid, Religious response to social change in Afghanistan, 1919-29, 138

‌18 – Gregorian, The Emergence of Modern Afghanistan, 259

19 – Anderson, John, “Islam and the Afghan Regime,” Religion in Communist Lands 14, no.2 (1986): 174. Accessed at https://doi.org/10.1080/09637498608431251.

20 – Kalakani, Habibullah. Proclamation, Habib Ul-Islam, February 20, 1929). Accessed at https://pbs.twimg.com/media/Co3ELr9WcAAZ66e.jpg.

21 – Gregorian, The Emergence of Modern Afghanistan, 293

22 – Ibid, 302

23 – Nafees ur Rehman Durrani (@NafeesRehmanDr), “The most unfortunate controversary & the subsequent violence over girls Ed. that gripped AFG abt 90+ yrs ago, continue to cast shadows on today’s AFG as well. Back then, it was Najaf Ali, from Jalalpur Punjab, who wrote a 53 pages doc to convince Nadir Shah to resume girls Ed.,” Tweet, April 20 2022. 

24 – Tahir Khan, “In letter to Taliban chief, Mufti Taqi Usmani urges reopening girls’ schools,” Dawn, April 21 2022. https://www.dawn.com/news/1686106/in-letter-to-taliban-chief-mufti-taqi-usmani-urges-reopening-girls-schools

25- Male, Beverley, Revolutionary Afghanistan: a reappraisal. (London, Routledge, 1982). 17

26  – Kakar, Muhammad Hasan, Afghanistan: The Soviet Invasion and the Afghan Response, 1979-1982. (Berkeley: University Of California Press, 1997).

27 – Ibid

28 – Jones, Adele, “Curriculum and civil society in Afghanistan,” Harvard Educational Review 79, no. 1 (2009): 115

29 – Benard, Cheryl, “Civil Democratic Islam: Partners, Resources, and Strategies” (Santa Monica, California: RAND Corporation, 2004), 46

30 – Ibid, 34

31 – Ibid, 48

32 – Ibid, 63

33 – Ibid, xi 

34 – Bush, George W.. Address before a Joint Session of the Congress on the State of the Union. (Presented at the United States Congress, January 20, 2004). Accessed at https://www.presidency.ucsb.edu/documents/address-before-joint-session-the-congress-the-state-the-union-24.

35 – Fazelminallah Qazizai, “Why the Taliban View Education as a Weapon,” New Lines Magazine, April 4, 2022. Accessed at https://newlinesmag.com/letter-from-kabul/why-the-taliban-view-education-as-a-weapon/.

36 – Arwa Ibrahim, “Explainer: The Taliban and Islamic Law in Afghanistan” Al Jazeera English, August 23, 2021. Accessed at https://www.aljazeera.com/news/2021/8/23/hold-the-taliban-and-sharia-law-in-afghanistan.

37 – BBC Pashto (@BBCPashto), د طالبانو حکومت د بهرنیو چارو وزارت سیاسي مرستیال شېر محمد عباس ستانکزی وايي یو ملت هغه وخت پرمختګ کولی شي چې تعلیم پکې وده وکړي بل لور ته همدې غونډه کې د طالبانو د امر بالمعروف وزیر شیخ محمد خالد حنفي وویل، دنیاوي تعلیم مباح دی، او که څوک یې د اسلامي نظام لپاره کوي نو مستحب دی, Twitter video, September 27 2022.

Texto original de Afghan Eye – Afghanistan’s Century of Politicised Education.