Texto de: Pedro Gaião

Quando se fala me budismo, é praticamente automática a sua associação com países do Extremo Oriente, tais como Camboja, Tibet, Myanmar e muitos outros. Mas, apesar de toda a proeminência e dos fortes elos que o Budismo desenvolveu nessas regiões, com o próprio Tibete sendo uma verdadeira teocracia budista, muitos espectadores ocidentais talvez se surpreenderiam ao saber que o Budismo não é uma religião com raízes no Leste Asiático, mas sim subcontinente indiano, ao Sul.

Não é atoa que a audiência mais leiga demonstra desconhecimento: o budismo hoje está longe de ser uma religião popular entre o povo indiano, que apresenta uma distinta identidade hindu, religião seguida por cerca de 80% da população. Embora esteja na condição de quinta maior religião da Índia, o budismo é uma fé seguida por apenas 0,7% da população, sendo precedida por religiões estrangeiras de raiz abraâmica, como o Islamismo (14%) e o Cristianismo (2,3%), e do Sikhismo (1,7%), um culto sincrético inspirado no monoteísmo muçulmano e no diverso buquê de religiosidade tradicional pagã do subcontinente indiano.

Originalmente, especialmente antes da chegada do Islã, o budismo desfrutava de importância significativa no panorama confessional indiano, com poderosos impérios budistas se projetando sobre o território do subcontinente e patrocinando mosteiros e centros educacionais de importância internacional. Assim como a significância de Jerusalém para as religiões abraâmicas, centros budistas como os de Nalanda funcionavam como uma verdadeira “Terra Santa” para budistas vindos da China, Tibete, Myanmar e afins.

Todavia, por alguma razão, tanto o budismo indiano quanto Nalanda entraram num profundo declínio. Paralelamente a isto, o Islã conquistava mais espaço na sociedade indiana, por variadas formas. Invasões do Califado Omíada (a partir do séc. VII) e de povos nomádicos islamizados, assim como a atividade missionária (eg. conversão do Rei de Malabar no séc. IX), adquiriram sucesso significativo em estabelecer a presença islâmica no subcontinente. A coincidência entre estes dois eventos, partindo do princípio de que eles eram necessariamente contemporâneos, levou diversas gerações de leigos e historiadores a presumirem que o Islã foi a causa do budismo indiano ter sido levado ao completo oblívio. 

Sem dúvidas, fatores como a má aplicação de metodologia histórica, suspeitas ocidentais históricas sobre o Islã e a própria propaganda imperialista tiveram um papel imenso na narrativa de que o próprio Islā destruiu, em termos bem literais, o Budismo da Índia. Isso explicaria a impopularidade do budismo como religião na Índia a partir do segundo milênio e daria uma explicação simples, direta e, ideologicamente falando, potencialmente lucrativa em moeda política.

O trabalho da historiadora Audrey Truschke, erudita em História da Índia e do Sul da Ásia, resume bem a situação historiográfica da questão;

“Como Johan Elverskog colocou, ‘Sempre que o tópico do Budismo e do Islã é mencionado, ele quase sempre gira em torno da destruição do Dharma pelos muçulmanos.’ Os acadêmicos modernos costumam se esquivar das descrições mais sensacionalistas desse suposto confronto apocalíptico que foi anteriormente característico na visão popular sobre o assunto, como exemplificado pela citação dada acima, de B. R. Ambedkar, o founding father da Índia Moderna que se converteu, numa fase avançada de sua vida, ao budismo. No entanto, a narrativa básica de que o Islã matou o Budismo do Sul da Ásia permanece viva e bem estabelecida, como pode ser representado por um livro popular de Budismo de 2013:

`A partir de 986 dC, os turcos muçulmanos começaram a invadir o noroeste da Índia a partir do Afeganistão, saqueando a Índia ocidental no início do século XI. Conversões forçadas ao Islã foram feitas e imagens budistas destruídas, devido à aversão islâmica à idolatria […]. Por volta de 1192, os turcos estabeleceram seu potentado sobre o Norte da Índia, a partir de Delhi. No Nordeste, a fortaleza do Budismo cairia, com a destruição da Universidade de Nālandā. ’” (TRUSCHKE, p. 406-407)

Entre os meios de discussão política e religiosa no Ocidente, a destruição da Universidade de Nalanda adquiriu grande proeminência como argumento anti-islâmico. Afinal de contas, além de destruírem a famosa Biblioteca de Alexandria, os muçulmanos teriam sido os responsáveis pela aniquilação de outro acervo inestimável para a História da Humanidade: a Universidade e a Biblioteca do mosteiro de Nalanda. Assim, a expansão islâmica não seria apenas responsável pela destruição de religiosidades, culturas e de vidas humanas, mas também do próprio conhecimento humano acumulado e preservado até então. Em síntese, o argumento gira em torno do Islamismo como uma força anti-intelectual e irracionalista, na contramarcha da História. 

O acabamento final deste argumento pode ser exemplificado pela própria descrição do economista e filósofo Amartya Sem, professor do Trinity College de Cambridge (Inglaterra) nascido na Índia:

“Depois de mais de setecentos anos de ensino bem-sucedido, Nalanda foi destruída na década de 1190 por exércitos invasores da Ásia Ocidental, que também demoliram as outras universidades de Bihar. O primeiro ataque, como é amplamente crido, foi liderado pelo impiedoso conquistador turco Bakhtiyar Khilji, cujos exércitos devastaram muitas cidades e assentamentos no norte da Índia. Todos os professores e monges em Nalanda foram mortos e grande parte do campus foi arrasado. Um cuidado especial foi tomado para demolir as belas estátuas de Buda e outras figuras budistas que estavam espalhadas pelo campus. A biblioteca – um prédio de nove andares contendo milhares de manuscritos – teria queimado por três dias.” (p. 421)

Todavia, apesar de toda esta dissertação confiante, a concepção de que os turcos muçulmanos incendiaram a gigantesca biblioteca de Nalanda tem um embasamento bastante deficiente. Isto porque primeiramente, nenhuma fonte contemporânea menciona a destruição de Nalanda, seja por Bakhtiyar Khilji, pelos turcos, por outros muçulmanos ou por qualquer outro grupo. A defesa mais típica dos defensores da destruição islâmica de Nalanda se amparam em uma única fonte islâmica do século XIII, cerca de meio século após o evento ter ocorrido, durante a expansão mongol. A fonte em questão, escrita pelo afegão Minhaj-i Siraj Juzjani, em seu livro Tabaqat-i Nasiri, descreve o ataque liderado pelas tropas de Muhammad bin Bakhtiyar Khalji a um mosteiro em Bihar, a mesma província onde se situava Nalanda.

“[Muhammad bin Bakhtiyar Khalji] liderou um exército até Bihar, saqueando a área. Por cerca de um ou dois anos, ele permaneceu nesta região até atacar uma cidade fortificada em Bihar. Narradores confiáveis ​​relataram que ele se aproximou daquela fortaleza bihari com duzentos cavaleiros bem armados e a atacou subitamente. Havia dois irmãos que eram homens sábios de Farghana, Niza-muddin e Samsamuddin, que estavam a serviço de Muhammad-i Bakhtiyar. O autor desta crônica [ie. o próprio Juzjani] conheceu Samsamuddin em Lakhnavati em 641 AH, conhecendo este relato através dele. 

Quando chegaram à cidade fortificada e começaram o ataque, esses dois irmãos sábios estavam entre o exército de soldados ghazi. Então Muhammad-i Bakhtiyar se atirou contra a porta dos fundos daquela cidade fortificada com força e coragem, conquistando assim o forte e obtendo grande pilhagem. A maioria dos habitantes daquela área eram brâmanes com cabeças raspadas. Todos foram mortos. Havia muitos livros lá. Quando aquela biblioteca chamou a atenção dos muçulmanos, eles chamaram aqueles [brâmanes] para pedir-lhes que divulgassem o significado daqueles livros. Mas eles já haviam sido todos mortos. Quando [os muçulmanos] descobriram [o significado desses livros], eles aprenderam que a cidade fortificada e o forte eram uma escola e que bihar é a palavra hindu para escola” (p. 414-415)

Apesar de ser baseada em relatos de testemunhas oculares, Truschke considera o relato como uma fonte de segunda mão (p. 419); não apenas pelo grande espaço de tempo entre os eventos e sua documentação, mas por erros da própria fonte (eg. confundir monges budistas, de cabeça raspada, com brâmanes hinduístas) e o fenômeno que a autora e outros poderiam considerar como “hipérbole teológica”. Isto se traduziria num comportamento típico dentre cronistas islâmicos de exagerar os feitos das invasões e destruições cometidas contra templos e sítios religiosos de religiões pagãs no subcontinente índico (ie. edifícios religiosos hindus e budistas). O Islã, como uma religião pura e iconoclasta, estaria justificadamente degradando propriedade religiosa dos idólatras.

“Durante sua vida, Muhammad bin Bakhtiyar promoveu uma imagem de si mesmo e de seu suserano, Muhammad Ghori, como destruidores temíveis” (p. 422)

É claro que muitos polemistas anti-islâmicos poderiam realçar a recepção extremamente positiva que as fontes islâmicas tinham destes ataques, mas não é isto que está em discussão. O que temos em discussão é justamente se o Islamismo foi responsável pelo extermínio do budismo na Índia e da destruição do imenso acervo da biblioteca de Nalanda. E é aqui que moram os problemas.

Para início de conversa, o relato documentado na crônica de Juzjani sequer identifica qual “cidade-fortaleza” eles atacaram. Alguns historiadores supuseram que o alvo do ataque descrito seria na verdade contra Bihar Sharif e o mosteiro de Odantapuri; ainda assim, tanto estas identificações quanto aquelas atribuídas a Nalanda carecem de evidências concretas. 

Também não sabemos quando a campanha de Muhammad-i Bakhtiyar teria se situado. Historiadores apontam os anos de 1193, 1197, 1200, 1202, 1205 ou 1206 todos como possíveis datas, mas ainda estamos muito longe de estabelecer um consenso.

Um outro problema poderia se traduzir na questão de quão importante era Nalanda nesta época e quão grande era o seu acervo por volta do ano de 1200. Isto porque até mesmo o que temos a respeito de relatos escritos sobre Nalanda consistem em tão somente descrições esporádicas feitas por budistas itinerantes que escreveram alguma coisa sobre o próprio mosteiro. Este número modesto de fontes, somados a um número igualmente modesto de referências arqueológicas, só nos permitem produzir especulações a respeito do que Nalanda pode ter sido no passado. Não sabemos exatamente quando Nalanda entrou em decadência, se ela foi destruída ou que tipo de destino ela levou. Simplesmente temos conhecimento de suas ruínas abandonadas e um punhado de fontes feitas por estrangeiros letrados.

As próprias fontes nativas da Índia só começam a produzir relatos mais detalhados sobre a sua história em pleno século XVII, sob domínio do Império Mogol (islâmico) e separados por centenas de anos daquilo ao qual descrevem. Não surpreende, portanto, que esses relatos tardios sejam repletos de imprecisões, especulações errôneas e palpites cronísticos que, no fim das contas, agregam pouco valor à historiografia da área (p. 418).

Toda a questão de Nalanda, e num escopo maior até da Historiografia da Índia, consiste justamente em aplicar uma concepção ocidental de fontes históricas e aplicá-las num país que se desenvolveu de forma muito distinta da Europa Medieval. Enquanto no Ocidente somos abastecidos como uma série de fontes contemporâneas produzidas por monges, cronistas e indivíduos letrados da sociedade secular europeia, na Índia o interesse por – e a capacidade de – documentar história parece ter sido muito mais limitada, e certamente sob critérios bem menos objetivos do que esperaríamos num equivalente ocidental ou mesmo islâmico. E é justamente por isso que a maior parte das fontes sobre Nalanda não são indianas, mas estrangeiras.

É claro que nos tempos do imperialismo, narrativas de um despotismo e sanguinolência islâmica eram politicamente convenientes: elas forneciam uma justificativa moral para a ocupação britânica em detrimento dos antigos conquistadores islâmicos, como Trushcke relata:

“Enquanto a História da Índia de Elliot e Dowson ainda é citada com uma confiança alarmante por parte dos estudos modernos, ambas são melhor entendidas como propaganda colonial. O prefácio de Elliot ao primeiro volume abertamente exata ‘a supremacia do Governo [colonial] Britânico diante ‘dos reis maometanos’ que emulavam ‘os vícios de um Calígula ou de Commodus’. O prefácio de Dowson ao segundo volume, que contém enxertos da Tabaqat-i Nasiri [ie. crônica de Juzjani] se divulga como ‘um notável e brilhante exemplo da força e da fraqueza, dos crimes, vícios e ocasionais virtudes do despotismo muçulmano.”   (p. 415)

Toda a qualquer especulação sobre o destino de Nalanda e o budismo da Índia levanta mais perguntas do que necessariamente fornece respostas sólidas. No fim das contas, elas nunca passam daquilo que realmente são: especulações. Algumas mais contraditórias e fantasiosas que outras, mas todas ainda presas no domínio dos palpites.

Da evidência limitada que temos, sabemos que Nalanda, por volta do ano 1200, 

“Nalanda parece ter caído em tempos difíceis. Por exemplo, Taranatha relata que pelos tempos do Rei Ramapala (cuja data é incerta, mas antes dos ataques turcos), Nalanda dividia seu professor-chefe com Vikramashila, outro mosteiro da região. Algumas inscrições sobreviventes registram auxílios fornecidos a Nalanda no século XII, o que sugere uma queda severa de patronato” (p. 420)

E ainda:

“Na verdade, a data do fechamento de Nalanda não coincide com a suposta invasão de Muhammad bin Bakhtiyar. Fontes tibetanas atestam que Nalanda permaneceu aberta no século XIII. Dharmasvamin, um monge tibetano que visitou a Índia entre 1234 e 1236, inclui uma seção inteira sobre Nalanda em sua viagem. Dharmasvamin menciona que turushkas (muçulmanos) feriram templos no passado recente e que um bando de invasores passou por Nalanda enquanto ele estava lá. No entanto, diz ele, monges ainda viviam em Nalanda, e Dharma-svamin passou vários meses estudando com um deles. Uma fonte tibetana do século XVIII registra que “depois que os invasores Turushka fizeram incursões em Nālandā”, uma biblioteca de nove andares conhecida como Ratnodadhi (Oceano de Jóias) ainda estava de pé e era usada por uma população de monges. Dhyanabhadra, um monge indiano, foi enviado a Nalanda para estudar por mais de uma década com Vinayabhadra durante a metade ao final do século XIII, antes de viajar para o Sri Lanka. Cingalaraja, um governante de Bengala, e sua rainha apoiaram reparos em vários templos e mosteiros em Nalanda nos séculos XIV e XV. Em suma, Nalanda sobreviveu a quaisquer ataques de Muhammad bin Bakhtiyar ou outros invasores islâmicos. A instituição também sobreviveu ao suposto efeito devastador de tais atividades militares na região. Os governantes budistas locais também sobreviveram a esses ataques e continuaram a governar partes da área no século XIII. Em outros lugares da Índia, como em Bengala, encontramos evidências do patrocínio real de mosteiros budistas no início do século XIII.” (p. 422-423)

Se as fontes documentais registram a permanência da biblioteca de Nalanda, sendo assim uma refutação óbvia da sua suposta destruição, existe ainda um fator geralmente ignorado pelos pesquisadores do assunto.

Foto em preto e branco de pessoa sentada em banco de madeira

Descrição gerada automaticamente com confiança média
O Buda de Nalanda, fotografado por Alexander E. Caddy em 1895.

Se os muçulmanos de fato destruíram Nalanda, seja parcialmente ou totalmente, porque exatamente as estátuas de Buda, que representariam aqui a epítome da idolatria, não foram alvo do vigor iconoclasta dos muçulmanos no suposto ataque de c. 1200? 

É de uma importância muito mais imediata a destruição dos ídolos do que a destruição de templos, muros e jardins. Supondo que os muçulmanos realmente atacaram Nalanda, só podemos presumir que ela foi reconstruída por monges e governantes budistas no decorrer dos séculos XIII, XIV e XV. Ou o Buda de Nalanda prova que os muçulmanos nunca prevaleceram sobre Nalanda, ou prova que eles não foram responsáveis pelo seu oblívio. Qualquer que seja o caso, nenhuma das postulações anti-islâmicas sobrevive à luz dos fatos. 

Bibliografia:

TRUSCHKE, Audrey. The Power of the Islamic Sword in Narrating the Death of Indian Buddhism. University of Chigado Press, 2018.

Amartya Sen, “India: A Stormy Revival of an International University,” New York Review of Books, August 13, 2015.