Texto de: Dr. Khalid Yahya Blankinship

A ideia de que o califado foi abolido em 1924 é um evento cujo significado foi muitas vezes mal interpretado pelos muçulmanos. O início do califado teve uma história mais ou menos contínua, de Abu Bakr, apesar das guerras civis de 656-661 e 683-692, até o golpe que derrubou al-Walid ibn ‘Abd al -Malik em 744.

Isso levou à Terceira Fitnah ou Guerra Civil, entre 744 e 752, durante a qual os abássidas chegaram ao poder em 749-750. Ao contrário da crença mais popular, a posição dos abássidas era fraca, não forte, pois os distúrbios da Terceira Fitnah minaram o califado.

Os abássidas nunca governaram na Argélia, exceto brevemente no extremo leste daquele país, Marrocos e Espanha, de modo que a unidade do Estado havia terminado decisivamente.

Na verdade, isso aconteceu primeiro quando os rebeldes berberes do Marrocos montaram seu próprio califado em 740, * e depois daquele ano, os muçulmanos do mundo jamais estariam sob um único califado em toda a sua história. *

Embora tenha sido mencionado que os omíadas na Espanha não reivindicaram o título de califas até o século X, eles estavam em um estado constante de relações hostis com os abássidas, que nunca governaram ou mesmo exerceram qualquer influência na Espanha.

Os berberes do norte da África, cuja revolta rompeu o primeiro Califado Omíada em 740, tinham muitas justificativas para sua revolta, e é realmente injusto apenas tratá-los como seguidores de uma seita Khawarij, como sempre foi feito.

Embora sua presença tenha dado origem à seita ou Madhhab dos Ibâdis, que ainda existe na cidade argelina de Ghardaya e também nas aldeias de Jabal Nafûsah, na Líbia, seu ímpeto inicial era puramente político. Tudo o que fizeram foi se rebelar contra um califado omíada que perdera toda a legitimidade, exceto entre os sírios, e que logo se desmoronou e desapareceu.

Lembre-se de que os sunitas nunca historicamente validaram o governo dos califas, exceto os quatro Rashidun e, frequentemente, Omar ibn Abd Abd al-´Azîz (717-720). Enquanto Mu’ayiyah ocorre no hadîth e pode ser defendido como um Companheiro, isso não se aplica aos últimos governantes omíadas.

O vice-rei do Oriente de Abd al-Malik ibn Marwân, al-Hajjâj ibn Yûsuf (714), executou até mesmo Saîd ibn Jubayr (714), o grande muhaddith e autoridade de al-Bukhârî e outras coleções de hadîth, sarcasticamente repreendendo-o por ter feito seu juramento de fidelidade, juntando-se à malfadada rebelião de Ibn al-Ashath muito antes e depois se escondendo.

Este episódio é documentado em detalhes por al-Dhahabî em seu enorme dicionário biográfico, Siyar a’lâm al-nubalâ, vol. IV. Desde a época de sua primeira proclamação, em 749, o Califado Abássida continuou a se desintegrar durante a maior parte de sua história.

É notável que Abû Hanîfah (699-767), o putativo fundador da Escola Legal Hanfí e jurista excepcional da metrópole mesopotâmica de Kufa, depois de ter apoiado o rebelde alida, Muhammad al-Nafs al-Zakiyyah, passou os últimos quatro anos e meio da sua vida (763-767) na prisão de Abu Ja’far al-Mansûr, que governou entre 754 e 775, o califa abássida fundador de Bagdá.

De fato, Abu Hanifah foi preso em Bagdá no mesmo ano da fundação daquela cidade e assim inaugurou a nova prisão.

Ultrapassando ainda mais a reivindicação dos abássidas ao domínio universal, foi estabelecido um califado xiita ismaelita, o fatímidas, que durou entre 909-1171 no norte da África e no Egito, e os omíadas sobreviventes na Espanha também reivindicaram o título de califas entre 929-1031, até que caíram.

Depois disso, muitos príncipes na Espanha e no norte da África alegaram ser califas, de modo que um poeta afirmou que eles adotariam grandes nomes como al-Mu’tasim, assim como os gatos domésticos que fingem ser leões.

A Dinastia Hafsida, de Tunis, reivindicou o título de califa, em 1253 até 1569, e adotou títulos de reinado que soavam como abássidas. Quando o Islã se espalhou para a África Ocidental, o mesmo aconteceu com o ”ofício de califa”. Isso se tornou parte dos títulos de Osman ibn Fûdî, ou dan Fodio, de Sokoto, e seus sucessores na Nigéria até hoje.

Como o Califado dos Otomanos era remoto e fingia pouco ser um verdadeiro califado, Osman ignorou-o. A continuidade do uso de tais títulos no Ocidente muçulmano também se estende até o presente, no Marrocos, onde Muhammad VI ainda é, até hoje, Emir dos Crentes, assim como Omar ibn al-Khattâb, e isso é tomado com seriedade mortal no Marrocos.

Assim, os marroquinos, tendo a sua própria sucessão contínua do título, de forma alguma, agora e nunca antes, reconheceram a reivindicação dos sultões turcos otomanos ao título de califas.

De fato, como os sultões do Marrocos reivindicavam descendência do Profeta e eram, portanto, coraixitas, enquanto os otomanos não eram, poderia ser um ponto contra os otomanos não reconhecerem o governante marroquino como califa e se submeterem a ele.

Enquanto isso, no Oriente, os abássidas não exerciam nenhum poder pessoal entre 861 e 892, e, novamente, entre 908 e 945, quando estavam sob o controle de ditadores militares. Eles perderam completamente todo o poder com a captura de Bagdá, em 945, pelos xiitas buídas, que mantiveram os califas abássidas sob prisão domiciliar até a própria queda dos buídas, em 1055, quando os turcos seljúcidas sunitas vieram como “libertadores”.

Contudo, os califas abássidas logo descobriram que os seljúcidas eram tão intoleráveis ​​que não permitiriam-lhes poder algum, embora os “respeitassem”, por exemplo, ao procurar casar-se com suas filhas.

Os seljúcidas se auto declaravam com o título de ”sultões” ou “autoridades” que, desde então, se tornou o título principal dos governantes no Islã, até o século passado, quando malik ou “rei” começou a fazer um retorno.

Os abássidas só voltaram a ser independentes dos sultões seljúcidas entre 1152 e 1258, após Bagdá ser capturada e destruída pelos mongóis e seu último califa abássida ser morto. Os egípcios mamelucos abrigaram um de seus descendentes, mas ele também foi morto pelos mongóis ao tentar voltar para Bagdá.

Depois disso, estabeleceram um parente distante no Cairo, em 1261, como califa, e essa linha continuou até a morte do último descendente dos abássidas em 1543.

Embora o muito distante Sultanato de Delhi, na Índia, usasse a investidura deles, todo mundo os considerava uma piada. Normalmente, o sultão mameluco saía e arrastava o califa na bagagem, como uma de suas esposas. Era forma sem conteúdo.

Ao mesmo tempo, os turcos da Anatólia usavam o título de califa ocasionalmente, antes de 1500, mas seu título real era sultão, exatamente como os seljúcidas, aiúbidas e mamelucos antes deles. Depois disso, o título de califa não foi usado por eles durante vários séculos, até que foi redescoberto no Tratado de Kuchuk Kanarjli em 1774.

Naquela época, naquele tratado com os russos, o sultão turco reservava para si o título de califa, de modo que ele ainda podia ser considerado o líder espiritual dos muçulmanos tártaros da Crimeia, que na época eram entregues aos russos.

*Depois disso, foi usado muito pouco, exceto em 1876, quando o governante otomano, Abdul Hamîd II, começou a chamar-se de “sultão-califa”, para ameaçar o Império Britânico e assim preservar seu governo.*

*Nisso, ele foi fortemente contestado por Abd al-Rahmân al-Kawâkibî (1855–1902), que apontou que, de acordo com a lei sunita, o califa tinha que ser da tribo do Profeta, ou seja, coraixita, e os otomanos não eram e nunca alegaram ser.*

Muito depois de Abdul Hamid ter sido derrubado em 1908-1909, muitos muçulmanos começaram a olhar para ele como o governante ideal e seu tempo como a idade de ouro, porque sua derrubada praticamente significou o fim do Estado turco otomano multinacional, mas eles não pensavam assim na época.

Seus sucessores Muhammad V Rashâd (1909-1918) e Muhammad VI Wahîd al-Dîn (1918-1922) continuaram a usar o título, mas estavam sob o controle de ditadores militares. Quando Muhammad VI se rendeu aos britânicos, em 1918, ele caiu sob o controle desses colonialistas, e ninguém lamentou sua expulsão pelo ditador militar Mustafâ Kamâl em 1922.

Depois disso, por dois anos, o primo de Muhammad VI, Abdul Majîd II, tinha o título de califa sem ser sultão, até que foi deposto por Kamâl, em 1924. Esse foi o fim de um califado, mas dificilmente o fim do conceito de califado em si, porque não havia nada de legítimo na alegação otomana de serem califas de acordo com muitos.

Parece-me que qualquer tentativa de restaurar o califado hoje teria que começar perguntando o porquê dos muçulmanos não possuírem o dever de jurar lealdade ao rei Muhammad VI do Marrocos que, certamente, mantém essa afirmação e faz isso através de uma antiga e venerável linhagem que remonta a muito mais tempo que a reivindicação otomana e é muito mais autêntica.

Não que eu mantenha a visão de que isso é o que deve ser feito, mas parece que a teoria clássica exigiria fidelidade ao califa existente ao invés de estabelecer outro como rival.


*O Estado Otomano representou o maior estado muçulmano sobrevivente no centro do mundo muçulmano no século XIX. Porém, ele quase caiu entre 1831 e 1840, e só foi salvo pelos britânicos e sua intervenção.

*Assim, durante a maior parte de seu século passado, não constituiu uma verdadeira política muçulmana independente, mas dependia da Grã-Bretanha para se proteger da Rússia e de outros inimigos. * De fato, sua destruição após a Primeira Guerra Mundial ocorreu porque transferiu sua lealdade para a Alemanha, de modo que a Grã-Bretanha não quis mais preservá-lo! “