Os Gassânidas, também conhecidos como Banu Ghassan (Filhos de Ghassan) foram um grupo de tribos cristã árabes que fundaram um reino de mesmo nome. Essas tribos migraram ainda no começo do século III do que hoje é conhecido como Iêmen para Haurã, na Síria, onde iriam se misturar comunidades helenizadas do cristianismo primitivo (cristãos antigos). Por conta desse contto com os cristãos, dentro de alguns séculos acabaram se convertendo ao cristianismo, muito embora muitos já fossem cristãos também.

Após se estabelecerem na região do Levante, os Gassânidas se tornaram vassalos do Império Bizantino, que eram rivais do Império Sassânida persa. Por conta disso, os Gassânidas lutaram contra não somente os Sassânidas, mas também contra os vassalos dos mesmos, os lacmidas (Banu Lakhm), um grupo cristão que vivia no sul do que é hoje o Iraque.

Após a conquista islâmica da Síria ainda no século VII (634-638), alguns Gassânidas se converteram para a religião Islâmica, enquanto a maioria se manteve cristã, aderindo às comunidades Melquitas e Siríacas nas modernas regiões da Palestina, Líbano, Jordânia e também na própria Síria.

De acordo com a historiografia tradicional, os Gassânidas faziam parte da tribo al-Azd, migrando do Sul da Árabia, no atual Iêmen. Assim, viajaram através da Península Arábica e se estabeleceram nas limes romanas1. A data da migração para a região do Levante é incerta, apesar de ser sabido que ocorreu no século III, podendo variar entre 250-300 d.C, havendo também algumas ondas migratórias por volta do ano 400.

Alguns relatos antigos se encaixam perfeitamente na descrição dos historiadores a respeito da migração Gassânida, como os escritos de Cláudio Ptolomeu, Plínio, o Velho e dentre outros. Entretanto, os registros mais antigos a respeito dos Gassânidas são datados do ano 473 d.C., isso por conta de um acordo entre o líder Gassânida, Amorkesos, e o Império Romano do Oriente. Tal acordo reconhecia Amorkesos como foederati2, governando assim partes da Palestina.

No que diz respeito à religiosidade dos Gassânidas, os mesmos não faziam parte daquilo que poderia ser denominado como ortodoxia cristã, sendo primeiramente miafisistas e posteriormente, por volta do ano 510 em diante, calcedônios.  

Relações com o Império Bizantino

Como dito anteriormente, logo após se estabelecerem na região do Levante, os Gassânidas se tornaram vassalos de Bizâncio, relação essa muito benéfica para os bizantinos, uma vez que possuíam um aliado a mais na batalha contra os Sassânidas e seus vassalos lacmidas.

Nesse sentido, por conta da posição geográfica dos territórios Gassânidas, que ocupava grande parte da região oriental do Levante, suas terras também serviram como aquilo que é chamado de “zona-tampão”3, novamente de grande utilidade para os bizantinos, que assim acabavam ficando protegidos de eventuais ataques de tribos beduínas, uma ameaça a menos para se preocupar.

Guerreiros árabes cristãos gassânidas do século VII. 

As guerras entre Bizâncio e Império Sassânida foram muitas, inclusive foi nesse contexto em que o Império muçulmano ascendeu. Já no que diz respeito aos Gassânidas, os mesmos eram responsáveis por resguardar as rotas comerciais, policiando as tribos lacmidas (aliadas dos persas) e também fornecendo quando necessário tropas para o exército bizantino.

As relações entre Bizâncio e Gassânidas eram boas, sendo que o rei gassânida al-Harith ibn Jabalah apoiou os Bizantinos em uma das incontáveis guerras contra o Império Sassânida, e em 529 lhe foi concedido pelo imperador Justiniano I o mais alto título imperial, que por sinal nunca havia sido concedido para um governante estrangeiro, sendo garantido também para o rei Gassânida o título de patrício. Porém, mais a frente haveria algumas desavenças entre os Gassânidas e os Bizantinos envolvendo questões religiosas, uma vez que al-Harith era um cristão miafisita, ajudando inclusive a reviver a Igreja Síria Miafisita, apoiando também o desenvolvimento dessa doutrina, que por sinal era oposta às concepções teológicas de Bizâncio, que a considerava como herética. Mais tarde o Império Bizantino iria perseguir essa heterodoxia religiosa, derrubando inclusive os sucessores do supracitado rei, al-Mundhir e Numan.

Apesar desse tipo de discordância religiosa, os Gassânidas ainda prosperaram economicamente, realizando diversas construções religiosas e edifícios públicos, assim como é de praxe nos impérios e reinados em boa situação econômica. Devido às finanças dos Gassânidas, investiram também nas artes, levando poetas famosos para suas cortes, como Nabighah adh-Dhubvani e Hassan ibn Thabit. O segundo chegou inclusive a ser um dos companheiros do Profeta Muhammad, escrevendo poemas em sua defesa.4

Gassânidas e o Islã

Os Gassânidas ainda eram vassalos do Império Bizantino quando o Islã surgiu e começou a se expandir na Península Arábica. Após a batalha de Yarmuk em 636, poucos anos após a morte do Profeta, os bizantinos e gassânidas seriam derrubados pelos muçulmanos na Arábia.

As divergências religiosas dentro do contexto Gassânida certamente ajudou na divisão dos mesmos, enfraquecendo-os perante os muçulmanos. Assim, alguns eram Calcedônios, outros Miafisitas, alguns inclusive se aliando com os muçulmanos (sendo cristãos) por conta da identidade árabe em comum com os fiéis do Islã.

Um dos principais momentos de contato ente Gassânidas, Bizantinos e Muçulmanos foi justamente quando os primeiros provocaram um ataque dos muçulmanos contra os bizantinos. Tal represália muçulmana ocorreu pois os Gassânidas haviam matado um emissário muçulmano enviado pelo profeta Muhammad. O Profeta havia enviado seu emissário para o governante de Bosra, sul da Síria, porém o mesmo seria morto pelos gassânidas no meio do caminho, na vila de Mutah sob ordens de um oficial gassânida.

Por conta dessa afronta diplomática, Muhammad enviou cerca de 3 mil soldados em 629 para realizar um ataque rápido nas tribos responsáveis pela morte de seu emissário. O exército muçulmano era liderado por Zayd ibn Harithah, filho adotivo de Muhammad. Já o segundo em comando era Já’far ibn Abi Talib, sobrinho do Profeta e irmão mais velho de Ali, sendo o terceiro em comando Abd Allah ibn Rawahah.

Acontece que o vicarius5 bizantino soube dos planos dos muçulmanos, organizando assim seu exército para esperar o exército islâmico. Os muçulmanos souberam da extensão do exército inimigo no caminho para batalha, o que os levou a reconsiderar a decisão de seguir em frente, esperando assim por apoios vindo de Medina. Entretanto, o terceiro líder em comando, Abd Allah ibn Rawahah disse aos seus companheiros que os mesmos desejavam pelo martírio, não havendo necessidade de esperar reforços, pois o que eles queriam já estava diante deles.

O exército muçulmano primeiro encontrou os bizantinos na vila de Musharif, recuando em sequência para Mutah, onde de fato os dois exércitos lutariam. De acordo com algumas fontes islâmicas, a batalha foi travada em meio de duas elevações, diminuindo assim a vantagem numérica dos bizantinos sobre o muçulmano. Entretanto, apesar dessa estratégia, os líderes muçulmanos foram sendo derrotados um por um, em sequência de sua ordem de comando: primeiro Zayd ibn Harithah, depois Jafar ibn Abi Talib e em seguida Abd Allah ibn Rawahah.

Após a queda dos três líderes muçulmanos, o exército se desesperou. Porém, Thabit ibn Al-Arqam, vendo o desespero dos soldados e a baixa moral do mesmo, tomou para si a bandeira do exército, reunindo assim os muçulmanos e os salvando da mais completa aniquilação, que seria certa caso não fosse a intervenção de al-Arqam, devido ao caos que havia se instaurado nas fileiras do exército islâmico. Depois disso a bandeira do exército seria  passada para o novo líder, Khalid ibn Walid, o lendário general muçulmano, que narrou ter quebrado nove espadas durante a batalha de Mutah devido à intensidade dos confrontos. Khalid se preparava para recuar enquanto enfrentava os bizantinos em confrontos rápidos, evitando batalhas em locais apertados em que pudessem ser encurralados.

Ao chegar em Medina, foram repreendidos por muitos por terem recuado, o que ocasionou no Profeta mandando os provocadores parar com as repreensões e censuras. Mais tarde, a tradição islâmica mencionaria que Khalid ibn Walid teria sido chamado de Saifullah, que significa “A Espada de Allah”.

O Profeta morreria em 632, sendo sucedido por Abu Bakr, que possuía o controle definitivo de toda a Península Arábica, resultando em um poderoso estado islâmico por toda a península. Poucos anos depois os muçulmanos estariam se expandindo cada vez mais, conquistando a Síria, domínio até então Gassânida.

Após essa conquista, a maioria dos gassânidas ainda professava a fé cristã, fosse ela melquita ou de alguma outra vertente cristã, como por exemplo a Igreja Siríaca. É interessante observar que após a queda dos Gassânidas no século VII, várias dinastias ao longo dos séculos tomavam para si o título de sucessores da Casa de Ghassan, como por exemplo a Dinastia Nikephoriana de Bizâncio e demais governantes.

Fator curioso é como dinastias séculos depois da queda dos Gassânidas ainda continuavam a mencionar seu legado, como os sultões rasulidas que governaram o Iêmen do século XIII ao XV, ou até mesmo os sultões mamelucos Burji do Egito do século XIV ao XVI. Vale lembrar que as duas dinastias citadas eram muçulmanas, enquanto que os Gassânidas haviam sido cristãos, mas a afirmação de fazer parte da descendência da nobreza árabe do tempo bizantino era certamente algo que conferia certo status para quem a afirmava, mesmo quase mil anos depois.

O legado Gassânida poderia ser visto ainda até pouco tempo atrás, uma vez que os últimos governantes que assumiram os títulos de sucessores da Casa de Ghassan foram cristãos de Al-Chemor e o Monte Líbano, governando o pequeno potentado soberano de Zgartha-Zwaiya até 1747.

Notas

[1] Conjunto de delimitações e fortificações romanas;

[2] Também chamados de “Federados”, eram tribos associadas ao Império Romano através de tratados, mas não possuíam cidadania romana nem outros benefícios semelhantes, mas possuindo a obrigação de fornecer soldados sempre que fosse necessário para as necessidades do Império se assim fosse solicitado;

[3] Uma faixa de terra separando uma área da outra;

[4] HOBERMAN, 1983;

[5] Autoridade delegada local;

Bibliografia

KAEGI, Walter E. Byzantium and the Early Islamic Conquests. Cambridge University Press, 1992.

NORWICH, John Julius. A Short History of Byzantium. Penguin. 1998.

HOBERMAN, Barry. The King of Ghassan. AramCo. 1983.

ISHAQ, Ibn. The Life of Muhammad. A. Guillaume (trans.). Oxford University Press. 2004.