Para a percepção Ocidental, o Islam sempre esteve envolvido em polêmicas. Isso é algo que pode ser claramente constatado quando os povos do Ocidente tiveram contato com a religião islâmica. Dentre essas polêmicas, algumas são frutos das distinções naturais entre o Islam e a religião cristã que acabam ocasionando divergências teológicas, doutrinárias e assim por diante; porém, algumas das polêmicas são puramente frutos da própria ignorância ou má-compreensão da religião dos muçulmanos.

A respeito dessa última espécie de polêmica, um caso “recente” surgiu após a publicação do livro de romance chamado Os Versos Satânicos (The Satanic Verses) de Salman Rushdie. Nessa obra, Rushdie possui um personagem chamado Mahound, baseado no profeta do Islam, Muhammad.

O escândalo envolvendo o livro de Rushdie não é pelo simples fato de utilizar a figura de Muhammad como base para seu personagem em sua obra de ficção, mas sim pelo o que é conhecido como “versos satânicos” (também o nome do livro), uma história registrada em algumas fontes islâmicas a respeito de como o profeta Muhammad supostamente teria sido enganado por um sussurro “satânico” e confundido essa mensagem com uma revelação divina.

Algumas das obras mais famosas dos primeiros séculos do Islam registraram essa história, dentre elas os escritos de al-Waqidi, Ibn Saad, Ibn Ishaq e até al-Tabari em sua exegese corânica. Muito embora cada autor tenha registrado essa história de maneira distinta, o cerne da mesma pode ser facilmente compreendido: em resumo, haviam três deusas principais adoradas pelos habitantes politeístas de Meca, Allat, al-Uzza e Manat. Em certa ocasião, conforme narra essa história, Muhammad teria recebido uma revelação permitindo que o povo de Meca pudesse buscar pela intercessão dessas deusas mesmo após a sua conversão ao Islam.

Para alguém que conhece o básico das crenças islâmicas, os tais “versos satânicos” acabam sendo um problema imenso para o Islam, uma vez que a doutrina do tawhid (unicidade de Deus) iria por água abaixo, transformando o monoteísmo puro da religião islâmica em uma mistura de paganismo tribal com ensinamentos abraâmicos. Não obstante, tal ocasião é frequentemente utilizada por apologistas de outras religiões (ou ainda ateus) para tentar desmerecer o Islam, o Alcorão e demais fontes islâmicas, uma vez que se valem dessas narrativas nas obras clássicas para afirmar que Muhammad teria sido um charlatão, e não o último profeta enviado por Deus.

Com isso explicado, pode-se imaginar o porquê tal livro causou um certo reboliço à época de seu lançamento oficial, mas algumas perguntas acabam pairando no ar: já que esses relatos só chegaram até Rushdie graças aos próprios autores muçulmanos, qual a interpretação islâmica sobre esse acontecimento na vida de Muhammad? Indo mais além, qual sua historicidade? Esses fatores serão abordados a partir de agora no texto.

Primeiramente, se faz necessário identificar as fontes que preservaram tal relato. Para isso, será abordado a principal biografia de Muhammad, a Sirat de Ibn Ishaq, frequentemente citada por anti-islâmicos na Internet por conter certas histórias que supostamente “desabonariam” a reputação do profeta do Islam, e incluindo os tais versos satânicos que (para os apologistas anti-Islam) provariam de alguma maneira que Muhammad não foi um profeta verdadeiro.

Acontece que a obra de Ishaq não é uma obra biográfica ou ainda historiográfica como as que temos hoje em dia. Em verdade, esse livro é um compilado das mais diversas tradições a respeito da vida de Muhammad, ou seja, o que Ibn Ishaq encontrava a respeito da vida do profeta do Islam ele acrescentava em sua obra, independentemente de averiguação de sua veracidade ou se contradizia algum outro relato. Assim, devido à sua metodologia, sofreu inúmeras críticas tanto de contemporâneos quanto de estudiosos muçulmanos após sua época. Dentre os contemporâneos com quem Ishaq teve problemas foi o próprio Imam Malik ibn Anas, o fundador da escola de jurisprudência Maliki, que na época denunciava Ishaq como sendo um “mentiroso”, rejeitando algumas das histórias contidas na Sirat devido às fontes que Ibn Ishaq havia utilizado para confeccionar sua biografia. [1]

Com o surgimento dos movimentos Sahih e de outros grandes movimentos de compilação de hadiths, focando principalmente na autenticidade e confiabilidade de suas narrativas e narradores, a história dos versos satânicos foi deixada de lado, uma vez que sua transmissão não era nada confiável devido às fontes originais, sem contar em demais absurdos históricos, teológicos, exegéticos e também manifestas contradições com trechos do Alcorão e da própria vida de Muhammad.

Algum tempo depois, vários foram os autores muçulmanos que contestaram a autenticidade da história dos versos satânicos, podendo ser citado nessa lista grandes nomes como Abu Bakr ibn al-Arabi, Fakhr ad-Din Razi e tantos outros.

O principal crítico, porém, talvez tenha sido o grande Imam al-Razi. Comentando sobre o versículo 22:52 do Alcorão em seu Tafsir al-Kabir, afirmou que a história não passava de uma invenção, citando argumentos baseados no próprio Alcorão, na Sunnah e também argumentos puramente racionais. Ele então relatou que o famoso muhaddith (especialista em hadiths) Ibn Khuzaymah disse se tratar de "uma invenção dos hereges" quando lhe questionaram a respeito do assunto. Al-Razi também registrou que al-Bayhaqi [2] afirmou que a narração da história não era confiável porque seus narradores eram de integridade questionável.

Ibn Taymiyyah, autor medieval cuja influência é mais proeminente na modernidade do que em sua época, foi um dos estudiosos islâmicos que aceitaram a autenticidade dos versos satânicos [3]. Ele, contudo, não foi o único a aceitar, mas conforme Ahmed Shahab, os estudiosos que aceitaram a autenticidade do relato se valeram de uma metodologia totalmente distinta daqueles que recusaram a sua veracidade, divergindo do que seria a forma padrão de estudar as fontes islâmicas. Assim, um posicionamento que começou majoritário (em prol da autenticidade dos versos) acabou sendo considerado como uma mera invenção conforme os estudos islâmicos foram se tornando cada vez mais refinados e complexos ao longo dos anos, sendo quase inconteste a sua falsidade dentre os especialistas do mundo medieval.

Hoje em dia, porém, os estudiosos modernos não-muçulmanos acabam divergindo a respeito da sua autenticidade ou não. Para os que creem que os versos satânicos são de fato autênticos, se valem das formas consagradas pelo método histórico crítico, afirmando que pelo fato de ser algo que desabona a reputação do profeta, deve então ser verídico, uma vez que os muçulmanos preservaram tal relato quando podiam muito bem excluí-lo ou modifica-lo. Já para os que recusam sua autenticidade, muitos dos argumentos seguem uma linha semelhante aos já expostos por al-Razi há quase mil anos atrás, considerando os famigerados “versos satânicos” como algo que não passa de pura invenção. Não obstante, o verso em árabe apresenta inúmeros problemas linguísticos, sem contar que não se encaixa com o versículo corânico que ele supostamente deveria seguir, além de outros erros e inconsistências lógicas que leva a crer quase indubitavelmente se tratar de um texto forjado. Os motivos para tal falsificação, entretanto, são um mistério. [4]

No que tange ao caso da obra de Salman Rushdie, o mesmo não só se valeu de algo já resolvido pelos muçulmanos há quase mil anos antes de sua obra ser escrita, como foi acusado de blasfêmia por vários personagens do mundo islâmico em sua época. Assim, como consequência, seu livro foi banido de diversos países majoritariamente muçulmanos e foi ainda promulgada uma fatwa (opinião jurídica) em 14 de fevereiro de 1989 pelo aiatolá Ruhollah Khomeini do Irã ordenando que Rushdie fosse morto. Essa fatwa, porém, foi condenada pela maioria esmagadora dos países da Liga Islâmica, assim como por grandes juristas muçulmanos que afirmavam que a recomendação de Khomeini era ilegítima e contrária aos preceitos da shariah (lei islâmica). Muhammad Hussan ad-Din, teólogo da célebre universidade de al-Azhar também se posicionou contra a decisão de Khomeini. Não obstante, estudiosos ocidentais não-muçulmanos do Islam também se posicionaram contra a fatwa do aiatolá iraniano, como foi o caso de Bernard Lewis, afirmando que uma sentença de morte sem julgamento, defesa e outros aspectos legais da shariah viola a jurisprudência islâmica. Segundo expõe Demant (2004):

[...] apesar de Rushdie ser cidadão britânico e estar fora da  jurisdição  do  Estado  iraniano,  Khomeini  avaliou  que  a  xaria  tinha alcance universal para todos os muçulmanos onde quer que estivessem, e que as fronteiras  nacionais  (inclusive  as  iranianas)  tinham  apenas  valor  relativo (DEMANT, p.51, 2004).

Ocorre que apesar da decisão de Khomeini ter sido amplamente condenada e objeto de divergência entre os teólogos e juristas muçulmanos, apenas a fatwa do aiatolá recebeu notoriedade, sendo divulgada como uma espécie de contraponto entre a evoluída sociedade ocidental versus uma sociedade islâmica retrógrada e fundamentalista. Ainda nos dias de hoje a controvérsia dos versos satânicos, seja a das fontes islâmicas ou do livro de Rushdie, é utilizada contra os muçulmanos para deslegitimar sua religião e seu profeta ou para taxá-los como perigosos e sanguinolentos. Contudo, para o Islam e para os muçulmanos em geral, a controvérsia ocasionada por Rushdie já havia sido resolvida quase mil anos antes do livro do autor britânico.

NOTAS

[1] O caso mais emblemático da Sirat de Ibn Ishaq que foi alvo de discordância por parte do Imam Malik foi devido ao suposto massacre de centenas de judeus perpetrados por Muhammad em Medina, uma vez que tal “acontecimento” possuía como referência fontes duvidosas. Não obstante, alguns especialistas modernos se posicionam favoravelmente ao lado do Imam Malik, afinal, caso houvesse acontecido tamanho morticínio, haveria outras fontes atestando o ocorrido, e não somente de filhos de judeus convertidos.

[2] Abu Bakr Ahmad ibn Husayn Ibn Ali ibn Musa al-Khosrojerdi al-Bayhaqi, ou apenas Imam al-Bayhaqi, nasceu no Irã e foi outro grande muhaddith de seu tempo, seguindo a escola Shafi de jurisprudência e a escola Ashari em teologia.

[3] Cumpre salientar que esse termo “versos satânicos” não é como os muçulmanos sempre chamaram essa história, mas sim um nome cunhado pelo orientalista Sir William Muir no século XIX.

[4] Para alguns especialistas, a motivação foi para explicar o contexto de uma passagem do Alcorão (22:52), em que é dito que Deus eliminaria as influências de satanás nas pessoas. Ou seja, os versos satânicos teriam ocorrido durante uma revelação divina, porém as intenções de satanás foram frustradas por Deus, comprovando o que estava registrado no Alcorão. Tal explicação, porém, não é o suficiente para muitos estudiosos modernos não-muçulmanos e para a maioria dos autores islâmicos que se depararam com a questão, contendo várias lacunas nessa tentativa de explicar os versos.

BIBLIOGRAFIA

AHMED, Shahab. Before Orthodoxy: The Satanic Verses in Early Islam. Harvard University Press. 2017.

KUNG, Hans. Islam: past, present and future. Oneworld. 2007.

RUBIN, Uri.  The Eye of the Beholder: The Life of Muhammad as Viewed by the Early Muslims: A Textual Analysis, The Darwin Press. 1995.

LEWIS, Bernard. The Crisis of Islam: Holy War and Unholy Terror. Modern Library. 2003.

TAHERI, Amir. Reflections on an invalid fatwa.

AHMEDI, Mohamed Arshad. Rushdie: haunted by his unholy ghosts. Avon Books. 1997.