A discussão sobre a personalidade do sultão otomano Selim II (1524-1574) remonta séculos. E provavelmente, o monarca era motivo de debate mesmo enquanto vivo. Isso é compreensível, sendo seu pai o sultão Sulaiman, o Magnífico, seria difícil de supera-lo em grandeza. Foi também durante o reinado de Selim que os aspectos pessoais da vida dos sultões tornaram-se imensamente mais privados e reservados, deixando a porta amplamente aberta para especulações (e até invenções) sobre sua pessoa.

Miniatura otomana do século XVI representando Selim II, por Haydar Reis.

Devido a isso, encontramos também sobre o sultão Selim uma distorção óbvia no que é aceito como “história” por estudiosos ocidentais. Uma vez que alguns fatos são examinados e contradições lógicas são expostas, a história propagada de Selim II torna-se muito claramente um conto inventado. A extensão dessa falsa história é um pouco inacreditável para aqueles que estão acostumados com o que foi comprado como a ideia de ‘’imparcialidade’’ ocidental quando se trata de notícias e história. Da mesma forma, muitas vezes há uma consideração negativa com aqueles que falam contra o que é considerado como um fato estabelecido, e pessoas que tentam trazer a ralidade estes mitos são tidos como “teóricos da conspiração”.

Curiosamente para a comunidade muçulmana, que alguns podem argumentar que ama teorias da conspiração, tem havido pouca ou nenhuma movimentação no sentido de refutação quando se trata do retrato falso da história otomana. Quanto ao porquê de não haver muita oposição, não é difícil chegar à algumas conclusões simples. Os fundadores do presente Estado secular da Turquia tiveram pouca motivação para promover uma visão precisa da história e procuraram separar-se dos otomanos, tanto quanto possível. Sem apoio estatal e realmente não havendo pessoas que se identifiquem com os sultões em espírito, não existiu nenhum esforço organizado pelo estado para proporcionar ainda que uma refutação emocional, muito menos um fato que exige investigação como neste post. Ao mesmo tempo, a população muçulmana, que se afastou do Islã e abandonou o Califado já revitalizou um novo ‘’islã anti-histórico’’ que evita contribuições otomanas e, em alguns casos, até mesmo perpetua esses mitos.

Selim II orando diante do corpo de seu pai, Sulaiman I, em uma carruagem.

Além disso, a maioria das pessoas foram privadas dos fatos reais uma vez que ocorreu uma mudança cultural maciça do Califado até os dias de hoje. Não só foi toda a língua otomana obliterada e uma nova linguagem forçada sobre a população turca, como mesmo antigas tradições religiosas, como o Azan (chamado à oração feito nas mesquitas) foram proibidos em qualquer idioma diferente do ‘’turco moderno’’. Durante décadas, os arquivos otomanos foram completamente selados, deixando apenas os tendenciosos documentos ocidentais do século XVIII como fontes da história otomana.

Os otomanos eram detentores de registros notórios, desde os primeiros dias do Império. Os arquivos otomanos são estimados por conterem mais de 150 milhões de documentos manuscritos. Apenas cerca de um quarto deles foram classificados e informatizados. Estima-se que apenas cerca de 32 milhões de documentos são atualmente acessíveis para pesquisadores. O Estado turco é extremamente seletivo sobre quem tem acesso a estes documentos, monitorando com cuidado, e ser banido sem aviso prévio é bastante comum. Os arquivos otomanos contém documentos de disputas fronteiriças, heranças, títulos e privilégios, escrituras, tributos, fundações de caridade e religiosas (vakif), documentos judiciais, títulos de propriedade, leis, demográficos históricos, fiscais, agrários, registros militares e correspondência oficial.

Só recentemente aos pesquisadores foi dada a capacidade de acessar até mesmo o catálogo limitado dos arquivos otomanos. Com isso em mente, este artigo irá se concentrar em grande parte, em fontes ocidentais aceitas, e principalmente no livro ” Osman’s Dream’’ ou “O Sonho de Osman” por Caroline Finkel, um dos poucos livros a usar informações dos arquivos otomanos, a fim de dar uma melhor imagem da história otomana. A intenção é comparar essas informações com o que é popularmente recontado como a biografia de Selim II, em grande parte, resumidos na Wikipedia com origem na Decima Primeira Edição da Enciclopédia Britânica (domínio público) e o livro “The Ottoman Centuries”, ” Os Séculos Otomanos’’ por Patrick Balfour Kinross.

Séculos Otomanos é um trabalho particularmente covarde quando se trata de precisão, sendo um dos mais populares sobre o assunto, contém apenas duas páginas de bibliografia para cobrir 700 anos de história em 640 páginas. Já Sonho de Osman, é um trabalho muito mais erudito, tendo 30 páginas de referências bibliográficas e 37 páginas de notas citadas para um total de 660 páginas. O trabalho de Kinross, a Enciclopédia Britânica inteira, e quase todos os livros ocidentais que falam sobre a personalidade do sultão Selim II tentam pintar o retrato de um bêbado incompetente.

A narrativa destas tão comuns fontes ocidentais se resumem neste seguinte paragrafo:

”Depois de ganhar o trono após intrigas palacianas e disputas fraternas, Selim II se tornou o primeiro sultão desprovido de interesse militar ativo e disposto a abandonar o poder aos seus ministros, desde que ele fosse deixado livre para perseguir suas orgias e deboches. Por isso, ele ficou conhecido como Selim ‘’o Bêbado’’ ou Selim ‘’o Beberrão’’. Seu grão-vizir, Mehmed Sokollu, um sérvio convertido a força ao Islã no que é agora a Bósnia e Herzegovina, controlava grande parte dos assuntos do Estado.’’

Miniatura otomana retratando a ascensão de Selim II ao trono.

Como se sabe, o álcool é proibido no Islã, a fé professada de todos os sultões otomanos (fonte da autoridade pela qual governaram). A tentativa de retratar certos sultões como bêbados parece estar enraizada em um desejo de demonstrar fraqueza de caráter e sinceridade quando se fala sobre a fé do Islã. Esta acusação é repetida através da maioria dos livros ocidentais a respeito do Império Otomano datados do século XVIII em diante (Selim II governou no século XVI), no entanto cada caso permanece não citado quanto à sua origem. O estudante mais academicamente honesto pode citar o trabalho de Kinross, mas ele leva-o a um beco sem saída, uma vez que já é observado quão mau referenciado este trabalho realmente é.

Como podemos conciliar a ideia conflitante de que o sultão tentou escapar de um principio tão básico do Islã, mas por algum motivo promovia o próprio Islã, especialmente tão fortemente como fez o sultão Selim II? É difícil aceitar essa caracterização, tendo em conta os numerosos investimentos no Islã que Selim II realizou, sacrificando grande riqueza pessoal, a fim de deixar um legado islâmico, que tem resistido até os dias de hoje.

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Muhammad bin Suleyman, ”Fuzuli” (1494 – 1556) , retratado em miniatura otomana.

Mas além disso, as nomeações que Selim II fez durante seu reinado foram dirigidas á indivíduos altamente piedosos, os quais eram famosos por suas poesias de profundo amor à Deus e ao Seu Profeta Muhammad. Um dos poetas mais notáveis da época, “Fuzuli”, foi nomeado Secretário de Estado.

Era um hábito comum entre sultões otomanos a utilização dos espanadores de pena de pavão ou avestruz da Mesquita do Profeta em Medina como adornos em seus turbantes imperiais. A cerimonia do recebimento dos espanadores consistia nos sultões limparem as penas nos olhos e no rosto dizendo: “Somos teus servos Profeta de Deus, e indignos mesmo do pó de tua abençoada cidade.”

Na imagem: adorno de turbante sultânico feito com espanadores da Mesquita e um retrato de Selim II no qual ele os usa.

Umma amostra de sua poesia demonstrando um caráter profundamente religioso está disponível dentro de Poemas Otomanos por E J W Gibb. As ordens imperiais do sultão parecem dificilmente capazes de caber dentro do personagem fictício que procurava fugir dos mandamentos do Islã para prosseguir com frivolidades ocidentais. Pelo contrário, as ordens imperiais mostram uma firme determinação para aliviar a carga de quem se envolvia na extenuante peregrinação à Meca, e uma atenção especial para os muçulmanos que viviam sob a subjugação de colonialistas intolerantes (principalmente os portugueses).

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Frota otomana no Oceano Indico, século XVI. Durante o reinado de Selim II diversas expedições marítimas foram enviadas ao Mar da Arábia e Oceano Indico para combater o colonialismo e pirataria portuguesa.

Trecho de uma ordem imperial do sultão:

‘’…por os malditos portugueses estarem em todos os lugares devido às suas hostilidades contra a Índia, e as rotas pelas quais os muçulmanos vão aos lugares santos estarem obstruídas e, além disso, por não ser considerado legal para o povo do Islã viver sob o jugo de infiéis miseráveis … você terá de reunir todos os arquitetos especialistas e engenheiros locais e investigar a terra entre o Mediterrâneo e o Mar vermelho e relatar onde é possível fazer um canal em que lugar do deserto e quanto tempo levaria e quantos barcos poderiam passar lado a lado.’’

– Fonte: Ottoman’s Archives: Muhimme Defteri Vol 7 N 721

Miniatura otomana de 1568 retratando Sokullu realizando suas preces islâmicas.

Sem sombra de duvida, foi com o sultão Selim II que os primeiros planos do Canal de Suez começaram, embora não tenha sido posto em prática durante em sua vida. A segunda parte da introdução do caráter de Selim II por fontes ocidentais, é a história comum de que ele efetivamente era controlado por seu Grão-Vizir. Esta teoria tem deixado de fora informações importantes contidas nos arquivos otomanos, onde Selim II foi muitas vezes decisivo entre vários vizires e criou suas próprias hierarquias de autoridade:

”Em 1568 uma forte expedição foi enviada para pacificar uma província sob o comando do ex-tutor e confidente de Selim II Lala Mustafá Pasha, uma escolha que mostrou que Selim não era inteiramente o peão de seu grão-vizir, por Sokullu Mehmed (vizir de Selim e primo de Mustafá) ressentir o lugar de Lala Mustafa nos afetos do sultão. Para acabar com o levante no Iêmen Lala Mustafa precisava de homens e suprimentos do Egito, mas o governador da província, seu rival Koca Sinan Pasha, recusou seus pedidos e tornou impossível para ele prosseguir a campanha. Em uma série de petições ao sultão os dois defenderam as suas respectivas posições. Koca Sinan provou se o mais forte e Lala Mustafa foi demitido do comando da campanha no Iêmen. Para marcar o continuo de seu favor, no entanto, Selim criou para ele a posição de sexto vizir do Conselho de Governadores do Império.’’

Osman’s Dream’’ por Caroline Finkel

Apresentando outra contradição estranha, depois de insinuar que Selim não tinha realmente nenhum cuidado ou controle sobre o Império, o relato de Kinross em Séculos Otomanos leva quase a suposições engraçadamente ridículas quanto às motivações para várias campanhas militares. Esta é uma citação da Wikipedia sobre o reinado do sultão:

” Os comentários de Lord Patrick Kinross sobre o reinado de Selim II é como ele inicia um capítulo de seu livro chamado “The Seeds of Decline”. Ele vê o esforço maciço para a reconstrução da frota após a Batalha de Lepanto como o início da lenta decadência do Império. Kinross também diz que a reputação de Selim por embriaguez foi solidificada em sua decisão de invadir o Chipre, em vez de apoiar a revolta mourisca em Granada, bem como na maneira de sua morte; Selim morreu depois de um período de febre provocada quando ele, embriagado, escorregou no piso molhado de uma inacabada casa de banho.’’

 

Miniatura otomana retratando o sultão Selim II ( 1524-1574) marchando com suas tropas perto de Konya, 1590.

Outras obras orientalistas de 1800 parecem ter o sultão Selim II como tão apaixonado por vinho, que enxergam sua motivação de conquista do Chipre por um desejo ardente pelas vinícolas do país. Por outro lado, Caroline Finkel observa:

‘’O atrito entre os otomanos e Veneza nunca foi completamente ausente, mas uma guerra total era geralmente evitada. Segundo os historiadores otomanos contemporâneos, foi pela proteção veneziana dada aos corsários europeus que assolavam embarcações otomanas que navegam a rota para o Egito, que levou Selim para montar uma campanha que visava a conquista do Chipre.’’

Não é difícil ver qual teoria parece mais inteligentemente considerada. Além disso, existem alguns relatos diferentes quanto a morte do sultão Selim II, alguns de fato dizem que ele morreu de complicações após a queda em um banho, sem mencionar embriaguez. Outras versões afirmam que ele caiu no caminho para realizar uma khutbe (sermão) na nova mesquita que leva seu nome. Curiosamente, por quão amplamente presente a ideia de um sultão Selim bêbado está difundida na internet, o trabalho de Caroline Finkel (baseado nos arquivos otomanos) não mencionam bebedeiras ou quaisquer orgias dentro das mais de 20 páginas na qual ela fala do sultão em seu livro.

Longe de tentar escapar das regras do Islã, o trabalho de Selim II no quesito religioso é verdadeiramente além das perspectivas. A mesquita Selimye que construiu é uma conquista arquitetônica que ainda causa reações emocionais. Lady Mary Wortley Montagu (d. 1762), esposa do embaixador inglês em Istambul é citada como dizendo que a mesquita que Selim II construiu era “o edifício mais nobre que já vi.”

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A mesquita Selimiye em Edirne na atual Turquia.

O viajante do século XVII Evliya Celebi nota a justificativa do sultão Selim para a escolha de Edirne como um local para a mesquita, relatando que o Profeta Muhummad veio ao sultão em um sonho e dirigiu-o para construí-la no local.

Interior do domo da Mesquita Selimiye em Edirne na Turquia, encomendada pelo sultão otomano Selim II ao famoso arquiteto Mimar Sinan, sendo construída entre 1569 e 1575.

Como também é conhecido dentro do livro Sonho de Osman, o trabalho de Selim em prol do Islã foi realizado muito além Istambul:

‘’O sultão Selim também continuou o envolvimento dos seus pais com Meca, o seu trabalho deu a Grande Mesquita a aparência distintamente otomana que ela mantém hoje. O recinto não tinha espaço para uma mesquita monumental como aquelas em Istambul, por isso as galerias que cercam o pátio foram remodeladas em estilo otomano dando cúpulas ao invés de seu telhado original. Estes trabalhos foram continuados durante o reinado de Murad III, servindo para impressionar peregrinos do todo o mundo com o poder e a generosidade dos novos protetores dos lugares santos muçulmanos.’’

Retrato de Selim II na obra do italiano Jacopo Ligozzi, século XVI, na qual o sultão aparece ao lado de uma besta demoníaca.

Isso é correto, toda a beleza estrutural da própria Meca em estilo otomano em grande parte veio da administração e recursos do sultão Selim II. Todos os peregrinos são testemunhas disso. Mesmo com tudo isso, e nós mal arranhamos a superfície das benfeitorias do sultão. Selim II foi sultão por apenas oito anos. Este foi um sultão que governou pelas fundações do Islã de modo que elas literalmente fincaram-se até hoje, o que em si é um testemunho da piedade de Selim. Com todas as informações de seus interesses pessoais, como o seu amor de tiro com arco, suas atividades políticas, seus projetos e planos arquitetônicos, e considerando o curto período de tempo de seu governo, é impossível compra-lo com a caricatura feita por Kinross de um bêbado vadio perpetuada por seu livro.

O trabalho de Kinross é citado em pelo menos 86 outros livros sobre história otomana, e é clara e fundamentalmente falho em sua descrição deste sultão. As falhas, se não em estrutura, em seguida, no raciocínio, são tão evidentes que lançam grandes dúvidas sobre o que é comumente conhecido sobre o Império Otomano em geral. A Enciclopédia Britânica e outras fontes bem consideradas de informação cometem os mesmos erros fundamentais de Kinross.

Pintura do famoso artista otomano Nigari datando do ano 1560, na qual mostra Selim II usando um adornado caftan enquanto pratica arquearia.

Osman’s Dream por Caroline Finkel é uma enorme melhoria ao que já existia antes dele, no entanto, sofre de uma falha crítica: falta de compreensão da cultura otomana-muçulmana. A reavaliação da história otomana precisa ocorrer através de pesquisadores com percepção da tradição e da cultura dos otomanos. Até que isso ocorra, o que está atualmente disponível é pouco mais do que o reconto de histórias de fogueira dos inimigo do império.

Via: Ottoman Imperial Archievs