“E há a tribo dos Yezidis, que não pertencem aos muçulmanos, sendo [eles, assim] os ‘Yezidis’. Todos os seus costumes, moral  e leis são diferentes [daqueles dos muçulmanos]. Esta tribo adora a Iblis, e aquele a quem chamam ‘Malak- Tāwūs’ é Satã. Sua linguaguem, todavia, é também o Curdo.”

- Mullah Mêla Mehmûd Bayazîdî

Quem já tem uma certa familiaridade com assuntos do Oriente Próximo – ou com literatura orientalista dos dois últimos séculos – dificilmente não conhece a história dos “adoradores do Diabo” nas montanhas do Curdistão Iraquiano. Tal epíteto, exprimindo séculos de preconceito e desconhecimento religioso sobre as crenças desse povo, também lança uma luz sobre eventos recentes de caráter trágico que acometeram esta isolada e curiosíssima comunidade milenar do coração do Oriente Médio. Neste artigo veremos a respeito da história, crenças e esclarecemos alguns mitos sobre um dos povos mais ímpares do Mundo – os yazidis –, uma religião sincrética que mistura elementos islâmicos (notadamente sufis), zoroastras, pagãos babilônicos, cristãos, judeus, gnósticos e, segundo alguns, até mesmo hindus. A escassez de fontes e a forja de fantasias, bem como o preconceito histórico, são inimigos, mas veremos aqui, com base no melhor que já foi apresentado ao público, também, a gênese e os traços desta amálgama metafísica que é o Yazidismo.

Habitando principalmente nas montanhas e vales da região do Sinjar, na região do atual Curdistão Iraquiano, contando também com algumas comunidades em território caucasiano (Armênia e Geórgia); hoje em dia, a diáspora yazidi – ou yezidi, ou mesmo iázidi –, os espalhou pela Europa (especialmente Alemanha e Rússia) e América (Estados Unidos), onde se desenvolveram bem economicamente. Tão bem ficaram que, em 2019, foi completa a construção do maior templo yazidi do mundo, no vilarejo de Aknalich, na Armênia, com fundos do empresário yezidi russo-armênio Mirza Sloyan. Um povo fechado em si, até mesmo pela pressão e perseguição que já sofreram, ao yazidis não aceitam convertidos: são uma religião étnica, assim como os druzos e alauítas; assim como eles, também, não aceitam casamentos fora da religião: se um yazidi casa com um não yazidi, ele deixa de ser um.

O templo mais importante da religião fica, no entanto, em Lalish, no Sinjar. Lá é dito ser a tumba de Sheykh ‘Adi, que é considerado o fundador do Êzdiyatî  (como os yazidis chamam a própria religião), junto de Sultan Êzdi; também está presente lá um santuário dedicado a “Husayn al-Hallaj”, que refere-se ao grande místico persa sunita Mansur al-Hallaj, executado em 922 da Era Comum por sua famosa frase “Ana-e-Haqq – Eu sou a Verdade”, que, segundo seus executores, o representando o aparato estatal da ortodoxia religiosa, constituía heresia e shirk (politeísmo). O sufi, que segundo os yazidis era um yazidi defendendo sua religião, foi açoitado, enforcado, esquartejado, decapitado e por fim, queimado.

Acima, à direita, o maior templo yazidi do mundo, o Quba Mêrê Dîwanê. Ao lado, o Qub Sultan Ezid, templo em Tbilisi, capital da Geórgia.

Esta associação com figuras importantes do sufismo não é por acaso, ela revela um primeiro elemento importantíssimo na gênese do Yazidismo: a influência sufi, especificamente dos ‘Adawiyya, na cosmovisão yazidi. Sheykh ‘Adi ibn Mussafer foi, historicamente, um muçulmano sunita ortodoxo, sendo elogiado até mesmo pelo controverso autor ibn Taimiyya em seus escritos como um “verdadeiros seguidor do Qur’an e da Sunnah”[1]. O mesmo se segue com Rabi’a ‘Adawiyya al-Basri e, até certo ponto, até mesmo com Mansur al-Hallaj, que apesar de sua heterodoxia e ideias ‘estranhas’ acerca de Iblis (Satã), foi reabilitado posteriormente por muitos sufis. Sheykh ‘Adi, de qualquer forma, foi transformado na principal encarnação do Divino (chamado de Xwadê) na Terra, juntamente de Sultan Êzid, figura obscura que alguns associam com o Sultão Yazid I ibn Muawiya ibn Abu Sufyan, o que os yazidis negam. Estes dois formam, junto de Malak-Taus, o Anjo-Pavão (também chamado de Tawûsê-Melek e Malak-Tawûz), principal divindade yazidi, uma espécie de “Tríade” que age no Mundo psicofísico.

Reunião inter-religiosa do clero católico caldeu e sacerdotes yazidis, Iraque, Império Otomano, século XIX.
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Melek-Taus é a principal e única deidade Yazidi (Sultan Êzid e Sheykh ‘Adi são considerados aspectos da Divindade, não propriamente entidades separadas) que atua como “regente” do Cosmos, junto do seu séquito de Sete Anjos; aí pode ser identificado um elemento pré-islâmico, muito provavelmente zoroastra ou mesmo babilônico, uma vez que no Zoroastrismo, Ahura-Mazda, o Deus Supremo, governa a Criação junto de doze yazatas (de onde o nome “yazids” provavelmente vem, uma vez que “yazata” ou “yazada” significa “ser divino”, uma vez que os yazidis atribuem a si mesmo uma origem divina, separada do resto da Humanidade). Melek-Taus, no entanto, não é um simples “regente” como o Lorde Denethor de O Senhor dos Anéis, de J.R.R. Tolkien, mas sim um aspecto da Divindade Suprema (Xwadê) que recebeu desta última “as chaves” da Criação, bem como a responsabilidade e crédito pelo ato da Criação, sendo assistido nesta tarefa por vários outros seres de origem divina: Anjos, Deuses Menores e Santos. Há, sim, a incidência de “Deuses Menores” no panteão yazidi, como Mahman-Rashan, que preside sobre os raios e chuvas; mas eles são geralmente invocados de maneira mais ritualística (isto é, para cumprir rituais) que de maneira prática (depositando fé neles). Os yazidis se consideram monoteístas mas, como vemos, essa situação é um pouco complicada: pode-se dizer que que eles estão numa corda bamba entre o monoteísmo e o politeísmo.

Há, também, a presença de personagens corânicos como Ibrahim, Musa, ‘Isa, Ali ibn Abu Talib e muitos outros. O fato é: existe um elemento sufi fortíssimo não apenas nos personagens sagrados do Yazidismo, mas na sua composição como um todo, tendo os yazidis um forte vocabulário sufi na sua tradição oral religiosa e no pouquíssimo de tradição escrita que há (grande parte, infelizmente, fraudulenta). Isso pode ser visto no épico yazidi do Qawle H'useyini H'alaj, em uma das suas estrofes, onde se encontra linguaguem e temas claramentes sufis (além do fato óbvio de estarem se apropriando de um notável figura sufi):

“Husayn disse: ‘Sim, Khaja, minha irmã, matastes a Husayn com zombaria!.

Khaja disse: ‘Ó Husayn, ó meu irmão, o Sol está nascendo para a comunidade dos amados amigos’.”

O Sol além, de ser um símbolo importantíssimo para os yezidis, que o adotam em sua bandeira e no pináculo de seus templos, aqui refere-se so Shams al-Ma’arif, o Sol do Conhecimento Verdadeiro, do Outro Mundo, que nasce para a “comunidade dos amados amigos”, uma terminologia sufi que se refere á uma tariqa, um caminho esotérico e místico em específico.

Acima, o templo de Mahman Rashan no Iraque.

Nesta segunda imagem, está o templo mais sagrado do Yazidismo, é a tumba de Sheykh ‘Adi, em Lalish, no Sinjar.

Uma outra provável influência pré-islâmica que pode ser observada diz respeito à deidade Sheykh Shams, isto é, o “Sheik-Sol”, a deidade solar dos yazidis: tanto no folclore, quanto em rituais, é citado o sacrifício de um touro à deidade; Garnik Asatrian e Victoria Arakelava fazem o paralelo até óbvio com a deidade solar Mitra, da Pérsia Antiga, ligada também ao sacrifício do animal. Ainda, uma oração-poema a Sheykh Shams nos dá uma pista da gênese islâmica do secto:

ǰihū ku di ǰihūna,

Salafxōrin di Bōtānē būna,

Aw žik (ži ku) li pē Šēšim dičūna.

Falah ku falāna,

Yē bi k’ašiš ū ābūnana,

Aw žik li pē Šēšim dihařina.

“Os judeus, que são do Judaísmo, eram usurários em Bohtan

Também eles foram buscar a Sheykh Shams

Os cristãos, que são da Cristandade, que têm padres e monges,

Também eles estão indo em busca de Sheykh Shams.”

 

A ausência dos muçulmanos enquanto comunidade alienígena, especialmente considerando que são a grande maioria na região tanto hoje quanto o eram na época, é, a princípio, estranha. Entende-se, porém, que o texto foi composto numa época em que os yazidis não se consideravam uma religião – e um povo – à parte dos muçulmanos da região, mas meramente um caminho místico dentre tantos.

Uma outra crença particular dos yazidis, pero no mucho, uma vez que é encontrada em outras seitas que saíram do Islam Esotérico, como os druzos e os alauítas, é a do tanâsux, que vem do árabe “tanasukh” e pode ser traduzido como reencarnação, ou transmigração das almas. Embora os yazidis detenham uma crença de Paraíso e Inferno, isso não intimida sua crença na reencarnação, que é bem parecida com um outro secto curdo que também veio do Islam, os Ahl-e-haqq, ou yarsanis, que tem na reencarnação uma das teses centrais de sua fé. Ao contrário deles, a reencarnção yazidi é um fenômeno mais marginal, tanto que não goza de plena aceitação na comunidade como um todo, embora seja bem difundida.

Historicamente, os yazidis sempre sofreram pressão e abusos de seus vizinhos curdos sunitas no tangente às suas crenças. Um dos nomes de Melek-Taus é, inclusive, Shaytan, que é um dos nomes árabes para Îblis, o “Satanás” islâmico. Embora não tenham um muito a ver com o outro, a associação inevitavelmente pegou e, com ela, o preconceito: os yazidis ficariam marcados para sempre, até mesmo fora o Oriente, como os “adoradores do Diabo”. Esse preconceito culminaria no Genocídio Yazidi perpetrado pelas forças terroristas de salafi-wahabbitas do infame Daesh (auto-intitulado “Estado Islâmico), ou ISIS, que perpetrou atrocidades contra a comunidade: matança de homens e escravidão e conversão forçada de mulheres.

Apesar do ambiente não muito agradável – quando não hostil –, através dos tempos, os yazidis conseguiram manter-se firmes e estabelecidos tanto em sua terra natal, as Montanhas do Sinjar, quanto na diáspora, sobrevivendo aos horrores do salafi-jihadismo que assolaram recentemente o Levante. Suas crenças únicas, ímpares, heranças de antigas civilizações que um dia dominaram o mundo e hoje subsistem entre essa gente humilde e tribal, sem dúvida ajudou e ajudará a manter esse povo e sua identidade vivos.

Referências Bibliográficas:

- Sufi Saints in the Yezidi Tradition I: Qawlē H'usēyīnī H'alāj̆ - Victoria Arakelova (2001).

- THE RELIGION OF THE PEACOCK ANGEL - The Yezidis and Their Spirit World. GARNIK S. ASATRIAN e VICTORIA ARAKELOVA (2014).

- Journeys in Persia and Kurdistan - Isabella Bird, Cambridge, 1891.

- https://www.theguardian.com/world/2016/jul/25/worlds-largest-yazidi-temple-under-construction-in-armenia

[1] (Mawlana al-Makki: "Shaykh al-Islam Ibn Taymiyyah and Sufism"- 2015)