Não seria estranho se a alegação de que a Inglaterra teve alguma ligação histórica com o Islamismo fosse recebida – principalmente em meios conservadores ou militantes cristãos – com chacota. Aliás, o próprio Chesterton, salvo diferenças óbvias de proporcionalidade, fez uso desta ideia como um representativo de um futuro hipotético e distópico onde muçulmanos na Inglaterra tentavam usurpar o passado do país com essas supostas raízes. Todavia, querendo ou não, a Inglaterra não esteve totalmente alheia dos indivíduos de turbante mais ao sul durante o curso da sua história, apesar de soar pouco credível ou até inicialmente ridículo.

Para muitas pessoas, mesmo aquelas que detém algum domínio além-do-básico sobre História Europeia, a própria ideia costumeiramente é tomada como um absurdo. Que a Rainha Elizabeth I, durante a Reforma Protestante, precisou se aliar tanto aos otomanos quanto os beberes do Norte da África – que inclusive desempenhou alguma importância no desenvolvido do reino como uma potência global – para defender-se da agressão do poderoso Império Espanhol e de todas as conspirações da Europa Católica ainda toma muitos britânicos e cristãos de supetão. “Bom”, pensam os mais razoáveis, “faz sentido que num mundo mais integrado como a Idade Moderna isso seja plausível, mas em épocas anteriores isto seria logicamente uma impossibilidade”. E mesmo assim, as influências islâmicas na Inglaterra remontam ao início da Baixa Idade Média, ainda antes da formação dos “Estados Medievais” e do renascimento intelectual do século XII – que, por sinal, é pesadamente influenciado pelo próprio Mundo Islâmico.

É curioso que monarcas como o rei João Sem-Terra (r. 1199-1216), mais bem conhecido pelas obras literárias e cinematográficas de Robin Hood, tenham inclusive considerado converter-se ao Islamismo – partindo do princípio de que fontes eclesiásticas tais como Chronica Majora sejam fidedignas e idôneas. No caso de João Sem-Terra, como nos relata o beneditino Matthew Paris, João Sem-Terra teria enviado uma embaixada até a corte do Califa Almoáda na península ibérica negociando sua conversão:

“[Matthew] alegou que eles levaram uma carta da oferta do rei, propondo colocar a Inglaterra à disposição do califa e prometendo que João “não só renunciaria à fé cristã, que ele considerava vã, mas também aderiria fielmente à lei de Muhammad”. (HISTÓRIA ISLÂMICA, 2021)

O califa, de acordo com a crônica, teria dispensado a embaixada com desdém: ele não tinha a intenção de se aliar com um governante cínico que mudaria de religião apenas em busca de apoio. E embora a ideia de que uma embaixada inglesa foi enviada ao califado Almoáda para conseguir apoio em troca de islamização seja muito provavelmente uma tentativa de difamação do próprio Matthew Paris, por outro lado a Chronica Majora estabelece que ninguém menos que o próprio Robert de Londres, o abade de Matthew, participou da embaixada comissionada ao Marrocos; indicando que ou o monge-cronista inventou uma mentira usando seu próprio abade ou o próprio abade mentiu sua participação nessa embaixada, ou, então, que o relato é verdadeiro, no fim das contas.

O Rei João não foi o único monarca inglês a se utilizar do Islamismo como um recurso político: seu pai, o rei Henrique II, já havia sugerido ou mesmo ameaçado o Papado com esse recurso, caso o mesmo não aceitasse depor Thomas Becket de sua autoridade episcopal.

“A ameaça de conversão de Henrique foi como um cassetete acenado diante do papa com mais força para persuadi-lo a remover Thomas de seu posto. Ele já havia ameaçado Alexandre antes. Oito anos antes, ele havia buscado uma dispensa papal para permitir que seu filho de cinco anos se casasse com a filha pequena de Luís, Margaret, permitindo-lhe dominar o Vexin, um condado francês importante que era o dote de Margaret. Ele havia intimidado os embaixadores de Alexandre, fazendo-os pensar que apoiaria o rival do papa, o antipapa Victor IV, se ele não conseguisse o que queria, e Alexandre acatou. Já havia funcionado antes, então Henrique provavelmente acreditava que o papa cederia novamente em face de sua estranha ameaça. Pelo que sabemos, entretanto, Alexandre não respondeu diretamente, mas continuou a pressionar por negociações entre Henrique e Becket” (GOLD, 2020)

Diante de toda esta exposição de como o Islamismo era utilizado como barganha política pela monarquia anglo-saxônica, assim como os exemplos posteriores de alianças e comércio entre ambos os mundos (Londres passou a hospedar uma colônia turca a partir do reinado da Rainha Elizabeth), parece haver evidências abundantes de que, apesar da Inglaterra ser um reino consideravelmente distante do Mundo Islâmico, ela não estava totalmente desatenta a sua existência ou indiferente à sua existência. Ainda assim, nossa tese ainda não foi provada: houve, de fato, influência islâmica na história inglesa de forma concreta? Esta pergunta inusitada recebeu uma resposta devida em 1999; não só houve influência concreta, pelo historiador britânico John Makdisi, como ela pode ser rastreada nas próprias instituições civis do país, nomeadamente, suas leis.

Henrique II e a Common Law Inglesa

O reinado de Henrique II envolve outras coisas além de assassinar o arcebispo de Canterbury e depois surfar no culto popular do mártir que ele mesmo criou. De fato, se não fosse por esse evento, Henrique seria lembrado por uma contribuição muito mais nobre: a reforma legal que transformou o antigo sistema anglo-saxão alto-medieval na moderna, sofisticada e promissora Lei Comum. Este novo sistema de leis, inovador e progressista para a própria época, atraiu a atenção de inúmeros especialistas no decorrer da História que tentaram explicar como, exatamente, esse sistema legal surgiu.

“As origens da Common Law estão envoltas em mistério. Criadas há sete séculos, durante o reinado do reinado do Rei Henrique II da Inglaterra, ainda não sabemos como algumas das suas instituições mais distintivas sugiram. Por exemplo, onde foi que se concebeu a ideia de que um contrato transfere a posse de propriedade por escrituras e não pela entrega ou possessão como uma forma de posse de bens? Ainda mais importante que isto: de onde recebemos a ideia de que todas as pessoas tem direito a um julgamento com júri?” (MAKDISI, 1999, p. 1637-1638)

As teorias associaram a inspiração da Common Law na Lei Romana e na Lei Canônica da Igreja, inferências um tanto óbvias para se pensar quando falamos do ideal legislativo para um país europeu na época. Todavia, não só essas associações se provaram enviesadas como elas também se propuseram inadequadas: não há nada no sistema romano ou eclesiástico similar à proposta inovadora da Common Law, o que significa que ou Henrique simplesmente fez uma grande inovação por conta própria ou foi inspirado por uma civilização desconsiderada em toda essa equação.

“Henrique II criou a common law no século XII, que resultou em mudanças revolucionárias no sistema jurídico inglês, principalmente entre as quais estavam a ação de dívidas, o assize of nível disseisin e o julgamento por júri. As fontes dessas três instituições há muito são atribuídas a influências de outros sistemas jurídicos, como o direito romano. O professor Makdisi descobriu novas evidências que sugerem que essas instituições podem traçar suas origens diretamente às instituições jurídicas islâmicas. A evidência está na identidade única das características dessas três instituições com as de suas contrapartes islâmicas, na semelhança de função e estrutura entre a lei islâmica e a lei consuetudinária e a oportunidade histórica para transplantes do Islã através da Sicília.” (Ibid)

Embora a tese de inovação autêntica, fruto do próprio pensamento do monarca, seja a alternativa aborígene mais viável, ela ainda assim se encontra academicamente defasada para tempos modernos. Desnecessário dizer, qualquer outra tese interna além dessa é carente de qualquer suporte textual em si

“Os historiadores sugeriram que a common law é um produto de muitas influências diferentes, sendo a mais importante a tradição civil do direito romano e canônico. No entanto, como veremos, as instituições jurídicas do common law se enquadram em um padrão estrutural e funcional único entre os sistemas jurídicos ocidentais e certamente diferente daquele do direito civil [romano]. A coerência desse padrão sugere fortemente a influência dominante de uma única tradição legal preexistente, em vez de uma colcha de retalhos de influências de vários sistemas jurídicos sobrepostos em um tecido romano. O único problema é que ainda não foi encontrada nenhuma tradição jurídica preexistente que se encaixe no quadro. Este artigo vai além das fronteiras da Europa e propõe que as origens da common law podem ser encontradas na lei islâmica [...] a Common Law [...] introduziu conceitos revolucionários que estavam totalmente em desacordo com as instituições jurídicas europeias existentes. Pela primeira vez na história da Inglaterra, a lei de contratos permitia a transferência da propriedade com base apenas na oferta e na aceitação, por meio da action of debt; a lei da propriedade protegia a posse através da assize of novel disseisin; e os tribunais reais instituíram um procedimento racional para resolver disputas por meio de julgamento por júri.” (Ibid, p. 1638)

Alguns destes conceitos podem parecer confusos para leitores não ligados ao tema, então bastaria explicarmos a ideia de assize of novel disseisin: consistia numa ação jurídica para se recuperar terras que foram tomadas do queixante; similar ao tipo de problema que um dono de terras no Brasil teria, caso sua propriedade fosse invadida por um movimento Sem-Terra.

Esclarecido alguns destes problemas conceituais, poderíamos endereçar a pergunta: por que a Sicília? A resposta, curiosamente, é bem simples: a Sicília do século XII experimentou uma síntese de diferentes povos num caldeirão cultural e religioso composto de judeus, muçulmanos e a população cristã helenizada da região, de cristianismo grego, encabeçada por um governo feudal normando, de cristianismo latino.

Os normandos, um povo de origens vikings que se estabeleceu e se aculturou no Norte da França, foi responsável não só pela Conquista da Inglaterra, a partir de 1066, mas de toda uma movimentação de comércio, conquista e serviço mercenário que ia desde ataques corsários em Al-Andaluz e Portugal no Oeste até a Galácia Bizantina no Oriente. Em muitos sentidos sucessores dos vikings, os normandos estabeleceram um reino no Sul da Itália, às custas de principados lombardos, do Império Bizantino e de possessões islâmicas, como era o caso do Emirado da Sicília.

Ao invés de destruir as culturas locais que operavam em perfeita coexistência sob o regime islâmico, os normandos simplesmente as adaptaram ao seu próprio modo, reinando sobre um Estado multicultural e multi religioso como poucos na época.

“Os muçulmanos, que governaram a Sicília por mais de duzentos anos antes da chegada dos normandos, foram governantes ilustrados que fizeram da ilha ‘o centro de uma civilização árabe tão esplêndida quanto a da própria Córdoba’. Felizmente, o advento dos normandos não destruiu essa cultura; com um gênio para a adaptação, os normandos a integraram com a sua própria. Os muçulmanos continuaram a praticar sua religião livremente e eram governados por seus próprios juízes e leis. Eles, por sua vez, forneceram um grande número de tropas de infantaria como mercenários. A genialidade da administração normanda foi incorporar elementos nativos do governo e da administração em seu próprio governo, a fim de preservar a continuidade e a identidade entre os povos que governavam.

Ao pensar na Sicília normanda, deve-se ter em mente sua estreita filiação com Ifriqiyya. O reino da Sicília, estendendo-se na “bota” da Itália e medindo cerca de 4/5 do tamanho da Inglaterra, era predominantemente africano e muçulmano e manteve contatos estreitos com o norte da África. Na verdade [...] por cerca de vinte anos durante o domínio normando da Sicília, Roger II até ocupou Ifriqiyya através do Mediterrâneo, no norte da África. Palermo, que se tornou a sede do governo de Roger, estava distante não mais que 250 milhas de al-Qayrawan e al-Mahdiyya, que se alternavam como a sede do governo muçulmano. Foi a presença combinada dos muçulmanos em Ifriqiyya e na Sicília que influenciou o trabalho de Roger II.

[...]

Rogério II foi especialista em incorporar muitos elementos islâmicos ao governo da Sicília, incluindo a burocracia e os arranjos fiscais estabelecidos pelos muçulmanos. Um ramo da Cúria, conhecido pelo termo árabe diwan, agia como órgão financeiro central do reino. Os registros usados pela cúria eram conhecidos pelo termo árabe daftars, e seus oficiais e escriturários eram em sua maioria muçulmanos

[...]

A influência do Islã sobre Roger II foi significativa em todos os aspectos de seu reinado. Sua aceitação e adaptação do Islã para as necessidades de seu reino na Sicília proporcionou uma grande oportunidade para transplantes para o Ocidente. "Em nenhum outro lugar", observou Haskins, "as civilizações latina, grega e árabe viveram lado a lado em paz e tolerância, e em nenhum outro lugar o espírito do renascimento se expressou com mais clareza na política dos governantes”. (Ibid)

O que distinguia a Sicília de qualquer outro reino com histórico de conquista muçulmana, ou com população muçulmana era justamente o elemento normando que também se encontrava na corte inglesa da época.

“A Inglaterra e a Sicília eram os únicos dois estados no século XII que tinham reis normandos. Devemos notar ainda que os normandos tinham um forte senso de nacionalidade, o que pode ser visto em suas instituições comuns. Em particular, os reinados do rei Roger II de 1130 a 1154 na Sicília e do rei Henrique II de 1154 a 1189 na Inglaterra compartilharam muitas características. [...] Como o reinado de Henrique II se seguiu ao de Roger II, ele teve a oportunidade de aprender muito com o rei siciliano. Henrique era um homem enérgico, conhecido por suas façanhas físicas e resistência, com uma fome de poder e riqueza que era temperada por seu grande interesse pela lei. [...] Ele teria sido irresistivelmente atraído para aprender e se apropriar dos mecanismos administrativos dos quais Roger II usou para conquistar seu poder, riqueza e sucessos/

[...]

Embora os comerciantes italianos fossem particularmente especialistas em comércio, Roger II era proficiente na coleta de impostos. Haskins observou que "[a] renda apenas de Palermo era considerada maior do que aquela que o rei da Inglaterra derivava de todo o seu reino." Esse fato por si só teria sido suficiente para chamar a atenção do rei Henrique II da Inglaterra para a Sicília, quando ele buscou ideias para a melhoria de seu próprio reino.

 

Os laços entre os dois reinos também foram fortalecidos pelo intercâmbio contínuo de pessoal administrativo, começando no governo de Roger II. Como observei em uma ocasião anterior, muitos funcionários públicos fizeram da Inglaterra e da Sicília seus lares.

[...]

Thomas Brown nasceu na Inglaterra por volta de 1120. Ele veio na Sicília pela primeira vez por volta de 1137, sendo provavelmente um protegido do chanceler Robert of Selby, que também veio da Inglaterra. Em 1149, ele apareceu como um Kaid Brun no diwan, o departamento fiscal do governo siciliano, que tem suas origens no predecessor público muçulmano e manteve seu caráter e operação muçulmanos.

[…]

A área do governo que Thomas Brown conhecia melhor era o departamento islâmico da Sicília, que recuperou terras para o rei da Sicília. Que surpresa deve ter sido para Henry descobrir que o segredo das proezas administrativas de Roger era de origem islâmica. No entanto, como observou Haskins, "[um] experimentador incansável como Henrique II não era homem de desprezar uma parte útil do mecanismo administrativo porque era estrangeiro". Henrique II teve uma rara oportunidade de aprender em primeira mão sobre o istihqaq, que era o procedimento islâmico pela recuperação de terras, e o lafif, que era o júri islâmico usado para estabelecer evidências no procedimento de istihqaq. Oito anos após Thomas Brown aparecer na Inglaterra, o English assize of novel disseisin foi decretado e o júri inglês em sua forma moderna surgiu. O rei Henrique II foi a pessoa certa na hora certa para aproveitar a oportunidade dos transplantes que revolucionaram o mundo com a criação do common law. (Ibid, p. 1727-1730)

Bibliografia:

MAKDISI, John A. The Islamic Origins of the Common Law. North Carolina Law Review, 1999. Disponível em: < https://scholarship.law.unc.edu/cgi/viewcontent.cgi?referer=https://www.google.com/&httpsredir=1&article=3823&context=nclr>. Acesso em 1 de julho de 2021.

HISTÓRIA ISLÂMICA. João, o rei que queria a Sharia para a Inglaterra. 5 de janeiro de 2021. Disponível em: https://historiaislamica.com/pt/joao-o-rei-que-queria-sharia-para-inglaterra/. Acesso em 1 de julho de 2021.

GOLD, Cláudia. Rei Henrique II: o rei inglês que ameaçou converter-se ao Islã. História Islâmica, 14 de dezembro de 2020. Disponível em: <https://historiaislamica.com/pt/rei-henrique-ii-o-rei-ingles-que-ameacou-converter-se-ao-isla/>. Acesso em 1 de julho de 2021.