Abu Rayhan al-Biruni, conhecido popularmente simplesmente como al-Biruni, foi indubitavelmente um dos maiores polímatas da Era de Ouro Islâmica. Dentre suas diversas áreas de atuação, al-Biruni se destacou principalmente na matemática, física, astronomia, ciências naturais e também história, cronologia e linguística, sendo versado em cada uma delas. Indo mais além, al-Biruni é normalmente chamado de pai dos estudos de religião comparada, assim como pai da indologia1, da geodésia2 moderna e o primeiro antropólogo

Nascido na cidade de Kath3 em 973, até então capital da Dinastia Afrígida da Corásmia, al-Biruni viveu durante um período de apogeu nas ciências dentro do mundo islâmico, período esse conhecido como Era de Ouro, época em que a pesquisa científica e o amor pelo saber foram amplamente financiados pelos califas do califado Abássida.

Apesar de ter atingido certa proficiência em várias áreas do conhecimento, al-Biruni durante os primeiros 25 anos de sua vida também estuaria gramática, teológica, jurisprudência islâmica (fiqh), medicina e demais ciências.

Proveniente de uma sociedade altamente culta e conhecida por sua tradição matemática, científica, astronômica etc, al-Biruni estudou juntamente com nada menos que um príncipe, Abu Nasr Mansur, que por sua vez foi também um grande matemático.

Al-Biruni atuou como secretário do príncipe e foi responsável por enviar cópias de suas obras a outras importantes figuras científicas, como ao matemático e astrônomo Abu l-Wafa al-Buzjani (940-998). Entretanto, tal situação não duraria por muito temp. Uma guerra civil estourou na região que terminou com o triunfo da dinastia Mamuni e a morte em 995 do monarca Abu Abd Allah Muhammad b. Ahmad.

Al-Biruni viajou muito durante sua viad, deixando seu local de nascimento para a corte Samânida de Nuh ibn Mansur em Ghazni, no leste do Afeganistão, também capital Samânida por algum momento depois de 990 d.C.

Em 998, ele foi para Gurgan, onde receberia o apoio de Qabus ibn Washmgir Shams al-Maali, governante do estado Ziyárida. Enquanto estava lá, Al-Biruni começou sua Cronologia das Nações Antigas, que é dedicada a Qabus. Nesta obra, concluída no ano 1000, ele mostra um conhecimento avançado das cronologias comparativas dos povos vizinhos. Ele parece ter retornado a Khwarizm por volta dos 37 anos e ter permanecido lá até os 46, quando seu patrono, Abul-Abbas Mamun ibn Mamun, foi assassinado por súditos rebeldes. Como resultado do assassinato, Mahmud de Ghazni (o primeiro sultão da história) invadiu a Corásmia e subjugou o país, exilando sua classe dominante (e Al-Biruni junto) para Ghazni no ano seguinte.

Al-Biruni serviu a Mahmud como astrólogo da corte, acompanhando o sultão até a Índia em suas incursões, escrevendo nesse ínterim seu clássico sobre o país, detalhando as características sociais, religiosas e científicas dos indianos, resultando assim em ser considerado como “o pai da indologia”. Durante este período, ele também produziu o Tafhim, seu livro de astrologia e assuntos relacionados.

Apesar de não ser possível saber todas as datas da vida de al-Biruni, algumas sabemos com exatidão pois o mesmo as documentou em seus trabalhos astronômicos, como por exemplo o eclipse lunar que ele documentou em 24 de maio de 997 em que observou em sua cidade natal, Kath. Apesar de não sabermos como ou porque, temos a informação de que a-Biruni voltou para seu país de origem em algum momento.

Filosofia e Teologia

Apesar de filosofia e teologia não terem sido as principais áreas de atuação de al-Biruni, o mesmo ainda realizou alguns escritos sobre o tema, refutando o lendário Avicena (Ibn Sina) durante algumas trocas de correspondências entre os sábios.

Nos escritos entre os sábios, al-Biruni refutaria a posição de Avicena no que diz respeito ao Universo Eterno, defendendo assim a ortodoxia islâmica, algo que o grandioso Imam al-Ghazali faria um tempo depois.

Al-Biruni, que era um muçulmano sunita Ashari (escola teológica islâmica) defenderia a posição de que o universo possuía um começo, sendo criado ex nihilo (do nada), afirmando que a posição de Aristóteles na qual Avicena se baseava era amplamente contraditória, pois conforme Biruni, o sábio grego afirmava que o universo e a matéria têm um começo enquanto se apega à ideia de que a matéria é pré-eterna.

As nuances do argumento de al-Biruni contra Ibn Sina vão muito mais além. Tal debate resultou em al-Biruni contente e orgulhoso de si mesmo, pois não abandonou os preceitos de sua religião em prol do pensamento dos gregos clássicos, como do próprio Aristóteles.

Cronologia e Trigonometria

Escrito depois de 998, o al-Athar al-baqiya (Cronologia das Nações Antigas) está entre os primeiros trabalhos de al-Biruni. Nessa obra ele começa com uma análise do dia como uma unidade cronológica fundamental e segue descrevendo os anos solares, lunares e lunisolares, assim como as diferentes épocas usadas por várias culturas e os nomes dos meses, antes de concluir com uma descrição detalhada do calendário judaico.

No que diz respeito à trigonometria, o Maqalid ilm al-haya (As Chaves da Astronomia) de Al-Biruni, foi o primeiro tratado conhecido sobre trigonometria esférica, que também data deste período inicial próximo de 998, pouco tempo depois de ter observado o eclipse lunar em sua cidade natal.

Na virada do século XI, Abu Nasr Mansur (o príncipe professor de al-Biruni), Abu l-Wafa al-Buzjani e Abu Mahmud al-Khujandi desenvolveram teoremas que se tornaram as leis dos senos, cossenos e tangentes. Esses novos teoremas tinham uma vantagem óbvia. Eles estabelecem relações entre os lados e ângulos de um único triângulo. O papel da obra Maqalid de al-Biruni foi justamente sistematizar essa nova trigonometria, que atingiu o Ocidente islâmico (isto é, Andaluzia) e foi sistematizada novamente por Ibn Muadh de Jaen (m. 1093), e depois por Jabir ibn Aflah de Sevilha durante a primeira metade do século XII.

Outra contribuição importante dedicada à trigonometria de al-Biruni foi sua obra Kitab fi ifrad al-maqal fi amr al-zilal (O Exaustivo Tratado sobre as Sombras). Al-Biruni foi um dos primeiros matemáticos a calcular as tabelas tangentes e cotangentes, bem como senos e cossenos.

Indologia

Considerado o pai da indologia, as obras de al-Biruni sobre o país são extremamente abrangentes, abordando assuntos como geografia, geologia, ciências, história, religião, aspectos da vida cotidiana dos indianos e assim por diante, como é o caso de sua obra Taḥqiq ma li-l-Hind min maqulah maqbulah fi al-aql aw mardhulah, também traduzida como “O livro confirmando tudo o que pertence à Índia, seja racional ou desprezível”.

Al-Biruni estudou profundamente a religião Hindu, chegando inclusive a traduzir as famosas obras do sábio Patanjali, autor de inúmeras obras em sânscrito. Algo que chama atenção na obra de al-Biruni é sua objetividade com o hinduísmo e seus fiéis, afirmando:

Não vou apresentar os argumentos de nossos antagonistas para refutá-los, pois acredito ser errado. Meu livro nada mais é do que um simples registro histórico de fatos. Apresentarei ao leitor as teorias dos hindus exatamente como são, e mencionarei com relação a elas teorias semelhantes dos gregos, a fim de mostrar a relação existente entre eles.

Dessa maneira, al-Biruni procurou compreender também o ódio de parte significativa que os fiéis do hinduísmo nutriam pelos muçulmanos, que eram considerados impuros e violentos. Assim, Biruni constatou que as invasões de muçulmanos no século XI na Índia resultaram nessa percepção por parte dos nativos hindus do país, o que contribuiu para que os hindus tivessem uma suspeita cada vez maior de todos os estrangeiros que colocassem os pés em território indiano, não somente muçulmanos.

Apesar disso, al-Biruni conseguiu angariar a confiança de muitos sábios hindus, chegando inclusive a estudar com eles para atingir a fluência em sânscrito, para que assim pudesse traduzir para o árabe obras de matemática, ciência, medicina, astronomia e outras áreas do conhecimento. Não somente, mas al-Biruni se inspirou também nos argumentos oferecidos pelos sábios indianos a respeito da esfericidade da Terra, que para eles seria a única maneira de explicar as horas do dia por latitude, estações e posições relativas da Terra com a lua e as estrelas.

Em que pese al-Biruni tenha sido extremamente objetivo em seus relatos, ainda sim teceu críticas aos hindus em outros escritos, como por exemplo a falta de curiosidade dos indianos pela sua religião e história. Além disso, não focou em questões “enfadonhas” como governos e batalhas, mas sim no dia-a-dia dos indianos, sua cultura e tradição, sendo que seus relatos e descrições da geografia da Índia em sua época e também de seus aspectos naturais são utilizados hoje em dia por historiadores para localizar certas regiões na Índia moderna.

Antropologia

Como pode ser visto nas viagens e na estadia de Biruni na Índia, o mesmo escreveu sobre o povo indiano, seus costumes, tradições, religiosidade, seu cotidiano e até mesmo sobre a geografia de sua nação. Assim, sempre com o máximo de neutralidade e objetividade possível, al-Biruni participou de uma observação extensiva sobre os hindus, chegando inclusive a viver com eles e aprendendo seus costumes na prática, assim como seu idioma e seus textos primários diretamente dos sábios de sua época.

Para Akhbar Ahmed (1984), al-Biruni pode ser considerado o primeiro antropólogo da história, apesar de essa afirmação não ser absoluta, sofrendo objeções.

História das Religiões e Religião Comparada

Apesar de seu profundo estudo no Hinduísmo, essa não foi a única religião estudada por al-Biruni, que também teve contato com o Cristianismo, Judaísmo, Budismo e Zoroastrismo.

Muito embora Biruni reconhecesse o Islã como sendo uma religião superior às demais, isso ainda não o impediu de ter um estudo objetivo sobre a crença de outras tradições religiosas, diferente de muitos escritores de seu tempo e até mesmo de nossos dias, que ao invés de procurar estudar seriamente um assunto e compreende-lo primeiro, partem direto para tentativas de “refutação”.

Expressando admiração por outros credos, al-Biruni muitas vezes citava textos das demais religiões em suas conclusões, procurando compreende-las ao invés de provar que elas estavam erradas e que o Islã era correto, apesar de suas convicções pessoais.

Geodésia e Geografia

No que tange à Geografia, al-Biruni possui vários escritos durante a época em que viajou pela Índia nas incursões de Mahmud de Ghazni. Entretanto, um fato curioso, é que al-Biruni em sua obra conhecida no Ocidente como Codex Masudicus de 1037 teorizou que havia um enorme território no vasto oceano entre a Europa e a Ásia, argumentando com base na circunferência da Terra e seus demais estudos de geodésia. Essa ampla massa de terra teorizada por Biruni seria as Américas, apesar do mesmo não ter conhecimento sobre ela, mas sim sendo uma estimativa com base na circunferência do planeta, argumentando ainda que ao menos alguma parte dessas terras poderiam ser habitadas, e que de fato um dia viriam a ser.

Em seus estudos de geodésia, al-Biruni valeu-se inclusive dos seus já mencionados estudos em trigonometria para calcular o raio da Terra, sendo apenas 2% maior do que as estimativas modernas. O seu método de avaliar o raio da Terra era inovador, uma vez que o mesmo a determinava através da observação da altura das montanhas, observando as montanhas paquistanesas na região do Punjab, estado indiano com fronteira com o Paquistão.

Al-Biruni morreria em 1050 aos 77 anos, e apesar de possuir obras incríveis e inovadoras, ficaria muito tempo sem ser referenciado até que seus estudos sobre indologia viessem a ser utilizados por países ocidentais, principalmente pelo Império Britânico em suas atividades na Índia no século XVII.

Notas

[1] Indologia é o estudo acadêmico de questões relativas ao subcontinente indiano, abrangendo história, cultura, literatura e demais estudos referentes à Ásia.

[2] Área que estuda o planeta Terra, seu formato geométrico, orientação espacial e campo gravitacional. Aristóteles foi o primeiro a estudar tal campo do conhecimento, mas o título de “pai da moderna geodésia” cabe à al-Biruni.

[3] Hoje em dia a cidade que al-Biruni nasceu leva seu nome, Biruni, em homenagem ao grande polímata muçulmano.

Bibliografia:

SAMSÓ, Julio. Al-Biruni. The First Golden Age of Islamic Science. Inference. 2018.

BOSWORTH, C.E. BĪRŪNĪ, ABŪ RAYḤĀN. Iranica Online. 2010.

KENNEDY,  E S Kennedy. Biography in Dictionary of Scientific Biography. 1970.

GLICK, Thomas F.; LIVESEY, Steven John; WALLIS, Faith. Medieval Science, Technology, and Medicine: An Encyclopedia. 2005

AHMED, Akbar S. (1984). Al-Beruni: The First Anthropologist. Jstor. 1984