As referências islâmicas em Star Wars
Autor: Guilherme Freitas 06/01/2022O medo leva à raiva, a raiva leva ao ódio e o ódio leva ao sofrimento.
- Mestre Yoda
Hoje em dia é praticamente impossível encontrar alguém que não conheça a franquia Star Wars, uma das maiores de todos os tempos. Com um universo único e genial, a franquia se tornou um ícone da cultura pop, sendo comuns as referências à criação de George Lucas. Todavia, o que poucos sabem são as inúmeras referências por trás da própria criação de Star Wars, dentre elas ao próprio Islã.
Assim como Duna, uma das obras pioneiras na ficção científica no que tange a viagens intergalácticas e a todo um universo neste sentido, Star Wars está recheado de referências à religião islâmica. A frase acima com a qual começamos o texto, uma das mais famosas proferidas pelo mestre Yoda, é uma clara alusão a uma frase muito semelhante do filósofo hispano muçulmano Ibn Rushd, conhecido no Ocidente como Averróis:
A Ignorância leva ao medo, o medo leva ao ódio, e o ódio leva à violência.
Joseph Campbell, uma das principais influências de George Lucas na criação de Star Wars, ficou conhecido pelo seu famoso livro “O Herói de Mil Faces”. Nessa obra de 1949, Campbell procurou fatores em comum em cada história, mito, lenda e texto religioso ao longo da história humana. O autor explora a teoria de que as narrativas mitológicas frequentemente compartilham uma estrutura fundamental, e tais semelhanças desses mitos levaram Campbell a escrever seu livro no qual ele detalha a estrutura do que ficou conhecido como monomito.
O Monomito pode ser definido como um conceito de jornadas cíclicas presentes em mitos. Também chamado de “jornada do herói”, o monomito é o “padrão” comum nas histórias que envolvem um herói que parte em uma aventura, sai vitorioso de uma crise decisiva e volta para casa mudado ou transformado de alguma forma pelos acontecimentos. Citando Campbell (2011, p.39-40):
Um herói vindo do mundo cotidiano se aventura numa região de prodígios sobrenaturais; ali encontra fabulosas forças e obtém uma vitória decisiva; o herói retorna de sua misteriosa aventura com o poder de trazer benefícios aos seus semelhantes.
Campbell cita como exemplo as histórias de Prometeu, Jasão, Eneias, dentre outros:
Prometeu foi aos céus, roubou o fogo dos deuses e voltou à terra. Jasão navegou por entre as rochas em colisão para chegar a um mar de prodígios, evitou o dragão que guardava o Velocino de Ouro e retornou com o Velocino e com o poder de recuperar o trono, que lhe pertencia por direito, de um usurpador. Enéias desceu ao mundo inferior, cruzou o horrendo rio dos mortos, atirou um bocado de comida embebida em uma substância calmante ao cão de guarda de três cabeças, Cérbero, e finalmente conversou com a sombra do seu falecido pai. Tudo lhe foi revelado: o destino dos espíritos e o de Roma, que ele estava por descobrir: "e, com essa sabedoria, ele poderia evitar ou enfrentar todas as provações"36. Retornou, passando pelo portão de marfim, ao seu trabalho no mundo (CAMPBELL, 2011, p. 40).
As tradições abraâmicas, contudo, não ficam de fora da obra de Campbell: o autor cita ainda a figura de Jesus e também do próprio Muhammad. Com referências feito a obra O Herói de Mil Faces, é de se esperar que Star Wars possua inspirações na tradição islâmica, assim como em outras tradições religiosas.
A obra de Lucas, em verdade, acaba bebendo de várias tradições religiosas que incluem credos além do próprio Islã. Isso particularmente se torna evidente nas inspirações religiosas no que tange ao ideal de “bem versus mal”, algo latente em inúmeras crenças pelo globo, e muito presente principalmente nas de cunho abraâmico, como o Islã, judaísmo e cristianismo (mais acentuado nesse último).
Na época do lançamento do Episódio I: A Ameaça Fantasma, a antiga The Muslim Magazine publicou uma série de artigos traçando várias ligações entre Star Wars e o Islã. Dentre os artigos publicados na revista, um deles contava com uma entrevista com Dhul-Nun Owen, que afirmou que George Lucas havia contatado os membros da ordem Sufi Habibiyyah em Berkley (Califórnia) para realizar suas pesquisas para a criação de Star Wars. Não somente, mas ainda nessa série de publicações da Muslim Magazine, Mahmoud Shelton afirmava que Star Wars também possuía paralelos entre os ensinos Jedi e o ideal de cavalaria muçulmano, chamado em árabe de al-futuwwa.
As referências islâmicas, contudo, não são meras especulações de fãs muçulmanos, mas sim uma realidade presente na obra de Lucas. O que mais se faz presente em Star Wars são principalmente referências ao sufismo, parte integrante do Islã sunita, sendo a mística islâmica sunita por excelência.
A Força em Star Wars
Um dos termos mais famosos de Star Wars é a “Força”, sendo a frase “que a força esteja com você” proferida por Obi-Wan Kenobi uma das frases mais famosas da cultura popular, conhecida até mesmo por pessoas que nunca sequer tiveram contato direto com a obra de George Lucas. O que poucos sabem, porém, é a origem sufi do próprio conceito de Força em Star Wars. Segundo a definição do próprio Obi-Wan Kenobi no Episódio IV: Uma Nova Esperança:
A Força é o que dá poder ao Jedi. É um campo de energia criado por todos os seres vivos, ela nos envolve e penetra. É o que mantém a galáxia unida.
No universo de Star Wars, a Força possui dois aspectos: a força viva e a força cósmica. A primeira representava as energias de todos os seres vivos, e essas energias por sua vez eram alimentadas pela força cósmica:
A Força Viva era alimentada por todas as coisas vivas e era distinta da Força Cósmica, é através dela que Jedi escolhidos podem se tornar Espíritos da Força. O Jedi Qui-Gon Jinn era um dos principais estudantes da Força Viva, e sempre explicava a importância dela a seu padawan Obi-Wan Kenobi (HENRIQUE, 2016, n.p.).
Qui-Gon Jinn, ao se comunicar com Yoda, proferiu a seguinte frase: “Toda energia da Força Viva, de todas as coisas que já viveram, alimenta a Força Cósmica, conectando tudo e se comunicando conosco através das midi-chlorians [1]. Por causa disso, eu consigo falar contigo agora”.
A Força, por sua vez, muito embora segundo Lucas não seja Deus, ele a criou com a intenção de que a Força fosse o “grande mistério do universo”, uma vez que o autor é teísta e procurou despertar o sentimento religioso nas pessoas. Segundo suas próprias palavras:
Eu introduzi a Força no filme para tentar despertar [...] uma crença em Deus [...] Eu acho que é importante ter um sistema de crenças e ter fé. […] Acho que Deus existe. [...] Em última análise, a Força é o mistério maior do universo. [...] Eu hesitaria em chamar a Força de Deus. Ela foi projetada principalmente para fazer os jovens pensarem sobre o mistério.
Como dito anteriormente, o Islã não é a única religião que George Lucas obteve inspirações durante a criação do universo de Star Wars. A própria ideia de Força se assemelha muito com a concepção chinesa de Tao. A descrição de Força dada por Obi-Wan Kenobi se assemelha muito ao conceito de Qi ou Chi no pensamento chinês, assim como os lados da força podem remeter ao conceito de Yin e Yang. Todavia, conceitos similares de “lado bom e lado ruim” existem em outras tradições espalhadas pelo mundo, dentre elas a islâmica.
Já sob um ponto de vista sufi, a Força não seria apenas uma representação fictícia de Deus, mas também do próprio conceito de barakah, que em árabe se traduz como “bênção”. Barakah, resumidamente, é definido como sendo tipo de continuidade de presença espiritual e revelação que começa com Deus e flui através daqueles mais próximos de Allah. Barakah pode estar presente em objetos físicos, locais e pessoas, conforme for designado por Deus.
Essa força começa fluindo diretamente de Deus para a criação que é digna de receber barakah. A transmissão de barakah, contudo, não se limita entre Deus e os que foram escolhidos para recebê-la, podendo ser transmitida pela proximidade física ou pela adesão às práticas espirituais do profeta Muhammad. Deus é a única fonte de barakah.
No que diz respeito à barakah concedida a seres humanos, o poder espiritual concedido por Deus a um santo sufi (wali) torna o santo capaz de realizar atos milagrosos conhecidos em árabe como karamat.
Os Jedi e o sufismo
Ainda no que diz respeito sobre a Força em Star Wars, os Jedi são uma “antiga organização monástica de guarnição da paz unificada pela sua crença na Força, especificamente o lado luminoso”. Um Jedi estuda e treina sob a relação clássica de mestre-aprendiz, muito semelhante a quando estudantes de ordens religiosas são instruídos com um padre ou erudito religioso até que tenham aprendido o suficiente para ensinar e treinar a próxima geração de alunos, em uma linha de transmissão e sucessão.
A relação mestre-aprendiz é muito acentuada na tradição islâmica. Por exemplo, um muçulmano geralmente treina sob a tutela de um sheikh por vários anos antes de receber a permissão (ijazah em árabe) para ensinar a outros sobre o Islã. Uma ijazah fornece uma cadeia de transmissores autorizados desde o autor original de determinado conhecimento ou tradição. À título de exemplo: há a cadeia de transmissão sobre um determinado livro, e se regredirmos até o primeiro que concedeu ijazah para ensinar essa obra a terceiro, estaremos diante do autor do próprio livro.
Na tradição sufi dentro do Islã não é diferente, porém há a presença do termo silsila. Os sheikhs terão “silsilas” que listam a cadeia de transmissão de professores que remonta em primeiro lugar ao profeta Muhammad. Silsila, portanto, indica a linhagem de aprendizado místico de um sheikh, da qual ele extrai sua autoridade espiritual.
Em Star Wars, por sua vez, na tradição Jedi os aprendizes (chamados de padawan) também são ensinados na mesma tradição e nas mesmas habilidades que seus mestres foram. Enquanto na silsila sufi podemos encontrar o profeta Muhammad como a origem, na Ordem Jedi temos o mestre Yoda.
Ao longo da jornada de estudo teológico islâmico, é possível se deparar com uma grande sabedoria nos trabalhos produzidos pelos eruditos muçulmanos, por vezes de séculos atrás. Da mesma forma, ao longo da série de filmes Star Wars, encontraremos lições de grande sabedoria enquanto o jovem padawan treina com os mestres Jedi. Os próprios termos “Jedi” e “padawan” carregam forte influência de termos reais árabes que são usados dentro do sufismo. O termo árabe "al-Jeddi" (mestre do caminho da mística-guerreira) junto com "Palawan" que eram títulos reais usados pelos cavaleiros muçulmanos, possuíam a mesma designação que os termos Jedi e padawan possuem em Star Wars.
O próprio mestre Yoda, que na Ordem Jedi é muito semelhante ao que o profeta Muhammad é para as ordens sufis, possui forte relação com a figura de al-Khidr (O Verde) dentro do Islã. Os comentaristas do Alcorão dizem que al-Khidr é um dos profetas de Deus, enquanto outros se referem a ele simplesmente como um anjo que serve como um guia para aqueles que buscam a Allah. Outros, ainda, argumentam que ele é a perfeita definição do que seria um wali, ou seja, aquele a quem Deus escolheu como amigo.
O nome Yoda, por sua vez, deriva do hebraico [2] e significa “O Sábio”, e assim como Khidr, é como um anjo ou mentor espiritual que guia o jovem Jedi nos caminhos da Força, assim como o ensina a ser forte o suficiente para resistir às tentações e inclinações malignas dos Sith e dos demais que fazem parte do lado negro da Força.
Os ensinamentos islâmicos e demais referências, porém, não se limitam aos exemplos citados acima. No "Episódio VI: O Retorno de Jedi", o Imperador tenta influenciar Luke Skywalker a ceder aos seus sentimentos de Raiva e Ódio, assim como aconteceu com seu pai Anakin. Contudo, os Jedi, tão quais os guerreiros muçulmanos, são ensinados que as intenções de uma pessoa na batalha devem ser puras e que é errado matar com raiva, mesmo quando é justificado externamente. Uma das principais narrativas do Islã primitivo de onde esse ensinamento é extraído é de um episódio que ocorreu com Ali ibn Talib, sobrinho do profeta Muhammad, seu legítimo sucessor para os muçulmanos xiitas e o quarto califa do Islã para os muçulmanos sunitas.
Na batalha da trincheira em 627, Ali havia derrubado um soldado inimigo no chão e estava erguendo sua espada para matá-lo, quando o inimigo cuspiu em seu rosto. Ali imediatamente parou e se absteve de matar seu rival. Quase incapaz de acreditar em seus próprios olhos, o homem caído perguntou: "Por que você me poupou?". Ali respondeu:
Há poucos momentos, eu havia vencido você na batalha, derrubado você no chão e estava a ponto de matá-lo. Mas quando você cuspiu na minha cara, minha raiva motivada pelo meu ego foi despertada contra você. Se eu o tivesse matado, não o teria matado por causa de Allah, mas sim motivado pelo meu próprio ego; eu não seria chamado de guerreiro campeão, mas de assassino.
Curiosamente, uma frase famosa de Rumi em seu Fihi ma fihi poderia nos remeter à passagem acima da vida de Ali ibn Talib:
A “Espada da Religião” é aquela que entra em combate pela religião e cujos esforços são totalmente para Deus. Ela discerne o correto do incorreto e a verdade da falsidade.
Mas, ele primeiro luta consigo mesmo e retifica seus próprios traços de caráter. Como disse o Profeta: “Comece com você mesmo!”.
A maior de todas as batalhas não é aquela contra um inimigo em uma trincheira, mas sim a batalha interna onde o indivíduo procura vencer o seu próprio ego. Somente será possível vencer um inimigo físico quando você consegue vencer a si mesmo. Tal pensamento é muito semelhante na “filosofia” Jedi assim como no pensamento islâmico tradicional. O Jedi purifica seu ego como o sufi faz com seu nafs (o “eu” em árabe, também traduzido como ego), e somente quando ele está livre de todo apego que poderia cegar a visão transcendente da realidade, a Força se manifesta por meio de uma capacidade supra sensorial como acontece com o Sufi através do conceito de fath (vitória/abertura).
Indo mais além, como uma espécie até mesmo de conclusão lógica, os Jedi em Star Wars seriam uma espécie de “guerreiros sacros”, cujo termo equivalente em árabe é mujahidin, uma vez que os mesmos lutam pela justiça, verdade e paz. Não somente, mas os Jedi também buscam se tornar unos com a Força, tão qual um muçulmano procura através da prática conhecida como zikr, ou “lembrança de Deus”, uma forma de meditação.
Os Jedi, assim como os muçulmanos mais espiritualizados, também possuem a prática da meditação e isso pode ser visto no Episódio I de Star Wars quando Qui-Gon Jinn começa a meditar no meio de sua batalha com Darth Maul. O próprio termo Jinn é ele mesmo proveniente do árabe, aqui uma clara referência para o que poderia ser considerado como o oculto, as forças que estão além da compreensão e alcance humanos.
Fato curioso é que Qui-Gon Jinn fez algo muito comum na história islâmica: meditar durante um confronto bélico. Vários são os exemplos que abarcam a história islâmica inteira onde os grandes personagens da religião meditaram durante uma batalha, principalmente durante algum momento crítico. Na verdade, o próprio profeta Muhammad e companheiros realizaram a oração em congregação mesmo durante o momento mais pesado da Batalha de Badr (624 d.C.). O exército dos Quraysh era três vezes maior do que o dos muçulmanos, mas Muhammad e seus companheiros dedicaram um momento para a oração, meditação e para lembrar de Allah (dhikr). Essa não foi a única vez que Muhammad orou durante uma batalha.
Posteriormente, outro fato marcante envolvendo oração durante a batalha não foi realizada pelo profeta, mas sim por um de seus descendentes, o seu neto Hussein. O neto do profeta Muhammad parou para realizar a Asr (oração do meio-dia) em Karbala em um evento marcante e decisivo para a história islâmica. Existe até um relato de que Ali, teria realizado sua oração enquanto tinha uma flecha cravada em sua perna.
O bom Jedi perde a consciência de si mesmo para entrar na unidade com a Força assim como o sufi faz para aniquilar-se (fana) em Allah. Portanto, tanto o verdadeiro Sufi quanto o verdadeiro Jedi nada temem.
A vida de um nobre guerreiro que luta por uma causa justa, seja ele um Jedi ou um mujahideen, não acaba na batalha que travou nem mesmo se ela for a última de sua vida. Tanto Obi-Wan Kenobi quanto Qui-Gon Jinn em Star Wars continuaram vivos em espírito após suas mortes. O Alcorão traz os seguintes dizeres a esse respeito:
E não digais dos que são mortos no caminho de Allah: "Eles estão mortos." Ao contrário, estão vivos, mas vós não percebeis (2:154).
Após sua morte, Obi-Wan Kenobi guiou Luke Skywalker, e histórias semelhantes podem ser encontradas na milenar tradição islâmica. Segundo Ibn Kathir, um dos principais exegetas corânicos de todos os tempos, Zaid ibn Kharjah (filho adotivo do profeta) foi alguém que falou depois de morrer. Zaid teria proferido as seguintes palavras em seu caixão:
Testifico que Muhammad é o Profeta de Allah e seu nome Ahmad foi mencionado nas escrituras anteriores (Antigo e Novo Testamento); e Abu Bakr e ‘Umar foram dois califas e agora é o governo de Usman. Quatro anos se passaram e faltam dois anos e os conflitos virão e os muçulmanos ficarão fracos
A narração acima de Ibn Kathir é testificada por tanto pelo Imam al-Bukhari quanto pelo Imam al-Bayhaqi, dois grandes muhadith (estudiosos de hadith) da tradição islâmica.
A franquia de Star Wars ainda guarda outras semelhanças com a tradição islâmica e que não necessariamente sejam influências da mesma. Exemplo disso é o próprio planeta natal de Luke Skywalker, Tatooine, em homenagem à cidade tunisiana Tataouine, um ambiente hostil muito parecido com a antiga cidade de Meca ao surgimento do Islã. Luke olhava para o deserto e refletia sobre seu propósito, da mesma forma que o profeta Muhammad fez no século VII. Com muitas injustiças consumindo a sociedade de Meca, o Profeta Muhammad ficou frustrado e procurou trazer mudanças positivas, o que é evidente tanto nas biografias islâmicas sobre o profeta quanto em biografias seculares, como àquelas que tentam pintar a imagem de Muhammad como uma espécie de líder social que buscava mudanças seculares na sociedade. [2]
Muhammad e seus seguidores foram duramente perseguidos em Meca, sendo alguns dos seus companheiros torturados e até mortos pelos pagãos da tribo Quraysh. Diante da perseguição sofrida pelos muçulmanos, Muhammad migrou para Medina para poder salvar sua vida e de seus seguidores, e com isso deixaram todos os seus bens para trás e partiram somente com a roupa do corpo. A guerra seria declarada, e os muçulmanos precisavam retomar o que era deles por direito. A questão inicialmente foi de vida ou morte, mas se tornou de justiça após os mais de dez anos de perseguição que os muçulmanos sofreram em Meca.
Em Star Wars, enquanto Luke Skywalker treinava com Yoda na caverna do pântano, ele se preparou para uma rebelião contra o império e buscou justiça para a república e trouxe paz e estabilidade para a galáxia e além. Alguns podem comparar Anakin Skywalker e o lado negro aos líderes dos Quraysh. Outros, contudo, veem o caminho trilhado por Anakin como uma interpretação equivocada da força, assim como grupos extremistas como ISIS, Al-Qaeda, Talibã e muitos outros fazem hoje com o Islã. A religião é a islâmica, porém da maneira mais distorcida e extremista possível, assim como a Força continua sendo a Força, porém desviada para um caminho maligno, diferente daquela protegida e defendida pelo mestre Yoda e Luke Skywalker.
A estética de Star Wars
Como recém-mencionado, o planeta natal de Luke Skywalker (Tatooine) foi baseado na cidade Tataouine na Tunísia, mas essa não é a única inspiração de ambientação ou visual na obra de George Lucas.
As vestimentas utilizadas pelos Jedi foram “emprestadas” das vestes das tribos do norte da África e de irmandades sufis. No documentário From Star Wars to Jedi: The Making of a Saga, o diretor também admitiu que muitas das escolhas estéticas, conteúdo e sonoplastia do filme foram tomadas no local e influenciadas pelos arredores onde a equipe se encontrava.
Camelos foram usados para alguns efeitos sonoros, enquanto as tribos nômades influenciaram a representação dos Povos da Areia (Tusken Raiders), tão quais várias aldeias e áreas tunisianas foram usadas como pano de fundo para a obra de Lucas.
A simbologia dos sabres de luz
Algo icônico na saga Star Wars são os sabres de luz, uma das principais armas utilizadas pelos personagens. Muito embora os sabres não sejam necessariamente baseados no Islã ou sofram dele alguma influência, há ainda a possibilidade de uma análise islâmica a respeito do que os sabres poderiam representar.
Os sabres de luz em Star Wars são feitos de plasma, e muito embora o plasma seja de coloração branca, na saga criada por Lucas vemos diversos tons: vermelho para forças malignas, azul para as forças aliadas e verde para o sabre que Yoda possui.
Símbolos em tradições religiosas, conforme a definição dada por Martin Lings, são uma sombra ou reflexo de uma realidade mais elevada. Ou seja, os símbolos carregam em si um significado muito maior do que aparentam, levando consigo realidades mais profundas e elevadas do que pode ser visto em primeira perspectiva.
Para exemplificar, o leite é um símbolo do Conhecimento, porque como o leite, o conhecimento espiritual nos nutre, nos dá vida e nos ajuda a crescer. O sabre de luz é um ótimo exemplo de símbolo, tanto por ser uma espada quanto por ser feito de luz. É um símbolo para o Eixo do Universo, que é o eixo da espiritualidade ou o eixo da consciência. A respeito da própria simbologia da luz, o Alcorão traz essa analogia com o próprio Criador:
Allah é a luz dos céus e da terra. O exemplo de Sua luz é como o de um nicho, em que há uma lâmpada. A lâmpada está em um cristal. O cristal é como se fora astro brilhante. É aceso pelo óleo de uma bendita árvore olívea, nem de leste nem de oeste; seu óleo quase se ilumina, ainda que o não toque fogo algum. É luz sobre luz. Allah guia a Sua luz a quem quer. E Allah propõe, para os homens, os exemplos. E Allah, de todas as cousas, é Onisciente (24:35).
Um prisma divide a luz branca em suas cores primárias: verde, vermelho e azul. Um prisma dispersa um feixe de luz branca nas cores do arco-íris. De acordo com Ibn Arabi, existem "entidades imutáveis" (ayan al-thabita). Essas são as maneiras pelas quais Deus conhece a Si mesmo. Quando a Luz de Deus atinge o Seu Conhecimento (o reino das Entidades Imutáveis), isso é muito semelhante a um feixe de luz branca atingindo um prisma ou prismas. O universo é criado de uma forma análoga à luz branca que produz as cores do arco-íris.
E, de fato, no Universo Expandido de Star Wars, parece que os sabres de luz da Velha República eram originalmente brancos. A cor do sol também é originalmente branca, mas o vemos amarelado devido à atmosfera terrestre.
Combinar as várias luzes coloridas para obter novamente a única luz branca é chamado de unificação, que em árabe pode-se traduzir para tawhid, que também é a doutrina da unicidade de Allah. Nesse caso, é quando alguém pode perceber o “sol espiritual”.
Assim como um feixe de luz branca pode ser dividido em milhões de tons quando passa por um prisma, a luz criada no início do universo, carregada de infinitas possibilidades, engendrou os incontáveis seres e mundos que observamos ao nosso redor hoje. Ela também pode ser comparada em analogia à luz primordial que gerou a criação no início do nosso universo.
Já no que tange à simbologia do próprio sabre, a espada e a lança (e por extensão a flecha e o bastão) são símbolos do Eixo do Mundo. A espada, o Eixo a Árvore do Mundo são símbolos intercambiáveis na tradição chinesa, assim como em demais tradições, a islâmica inclusa.
Em seu tratado sobre al-Ittihad al-Kawn (traduzido como A Árvore Universal e os Quatro Pássaros), Ibn Ara, equipara a Árvore Universal (al-shajara al-kulli) ou Eixo do Mundo com o que seria um ser humano perfeito. Além disso, a Árvore representa a vida eterna e é chamada de Árvore da Vida em algumas tradições, como na tradição nórdica com Yggdrasil.
Outro nome é Árvore da Luz. Esse feixe de luz (também chamado de Raio da Criação) é, no Sufismo, a primeira luz criada, o Primeiro Intelecto (Mente Universal) ou a Luz de Muhammad. Nos ensinamentos Sufi é o entendimento de que Allah criou primeiro "Nur Muhammad" (Luz de Muhammad), e que todos os outros seres foram criados a partir desta luz. Essa luz é manifestada não apenas no profeta Muhammad, mas também em todos os profetas, primeiro em Adão e depois nos outros profetas, mas apenas com Muhammad foi perfeitamente efetivada. Como tal, o profeta Muhammad é conhecido no sufismo como al-Insanul-Kamil (o Humano Perfeito). Nenhum ser humano foi ou será mais perfeito e mais glorioso do que Muhammad dentro da tradição islâmica.
O próprio formato da espada, ou melhor, do sabre em Star Wars remeteria à ascese sufi, uma vez que esse “condutor de luz” seria como a ascensão (miraj) do sufi em direção à Deus. No Islã, são as Cinco Orações Diárias que se realizadas de maneira adequada facilitam essa elevação, pois, como disse o profeta, a Oração é a Ascensão (miraj).
Essa é apenas uma das demais características de Star Wars que poderiam ser interpretadas com um olhar islâmico. Muito embora não seja esse o pensamento do criador da saga, é perfeitamente possível um muçulmano assistir os filmes e identificar aspectos da sua religiosidade dentro das telas, mesmo que de forma acidental e não proposital por parte de George Lucas. Outras questões, contudo, saíram diretamente da religião islâmica ou das sociedades que o Islã criou raízes e influenciou com sua tradição.
NOTAS
[1] Formas de vida microscópicas dentro das células, sendo responsáveis pela geração da Força nos corpos dos indivíduos; um meio de ligação entre o indivíduo e a Força, mas não a própria Força.
[2] Yoda também está presente no sânscrito e significa “guerreiro”.
[3] O que não abrange a totalidade da visão islâmica, uma vez que além do caráter de liderança secular, Muhammad é o último profeta de Deus trazendo uma mensagem divina e espiritual.
REFERÊNCIAS
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BENABDALLAH, Sadok. Understanding The Force & Islamic Spirituality. Huffpost, 2017.
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SANGIDU, et al. The Controversy of "Nur Muhammad" Concept in Malay Manuscripts: Tajalliy and Faidhun's Perspective Study. 2019.
STAR WARS AND SUFISM. Hbayman, [n.d.].