Califado Rashidun: O Islã após a morte do Profeta (662-631)
18/10/2020Em nosso artigo anterior, discutimos a controversa sucessão da comunidade muçulmana após a morte do Profeta Muhammad, em 632. Foi através dela que se originou a primeira oposição xiita que, embora quieta, levou a uma fragmentação da comunidade muçulmana que perdura até os dias atuais.
Neste artigo, trataremos sobre os acontecimentos posteriores a morte do Profeta, as guerras resultantes da apostasia que se espalhou pela Península Arábica e como foi o governo dos quatro califas, Abu Bakr, Omar, Osman e Ali, que compuseram o Califado Rashidun.
O Califado de Abu Bakr e as Guerras de Apostasia
Com a ascensão de Abu Bakr, liderança política da comunidade centrada em Medina, surgiram alguns problemas que ameaçavam a unidade e a estabilidade de todos os muçulmanos. A apostasia se espalhou por diversas tribos da Península Arábica, principalmente entre as que haviam feito uma conversão política ao Islã.
Estas tribos viam Muhammad não como um profeta, mas sim como um líder tribal árabe, e, após a sua morte, elas acreditavam que o seu legado poderia ser desafiado. O caos se espalhou com diversos levantes de rebelião, a exceção de Meca e Medina, e as tribos Banu Thaqif, em Taif, e os Banu Abdul Qais, de Omã no Sul.
A apostasia do Islã deve ser entendida em seu contexto. Para muitos árabes da época, o Islã era um movimento poderoso e unificador, que atraía a muitos que viam vantagens políticas na aliança com Muhammad.
O paganismo árabe em si não era uma religião organizada, sendo mais uma questão de costumes e superstições, facilmente derrotado no campo da teologia pelas reivindicações islâmicas.
Algumas tribos, por exemplo, não declararam um total abandono da religião, mas sim a revogação de seu terceiro pilar, o pagamento do zakat.
O zakat, é uma contribuição financeira obrigatória, sobre todo muçulmano capacitado, de 2,5% de seus lucros anuais, para a purificação espiritual de seus bens. Ele é destinado, majoritariamente, aos necessitados da comunidade muçulmana.
Nesta nova primeira reinterpretação do Islã, o zakat deveria ser pago somente a Muhammad, e como ele não estava mais lá para cobrá-lo, não seria pago a Abu Bakr.
Outras tribos emergiram declarando seus próprios novos profetas, demonstrando que suas apostasias não emanava de um desejo de abandonar uma religião em liberdade de consciência, mas sim de uma tentativa de reproduzir o modelo de sucesso islâmico em busca de poder político.
Aswad Ansi, que se declarou profeta, invadiu a Arábia do Sul. Ele foi morto em 30 de maio de 632, por Fērōz, governador do Iêmen, um muçulmano de origem persa. A apostasia de al-Yamama foi liderada por outro suposto profeta, Musaylimah, O Mentiroso.
Outros centros dos rebeldes estavam em Najd, no leste da Arábia. Muitas tribos alegavam que haviam feito aliança com Muhammad e que, com sua morte, sua lealdade acabou.
O califa Abu Bakr insistiu que ela não tinha acabado, e sim que sua aliança foi a um conceito maior do que um pacto tribal, a noção de Ummah, ou Comunidade, da qual ele era o novo chefe. Contudo, toda essa oposição acabou levando às Guerras da Apostasia (Ridda).
A estratégia planejada por Abu Bakr dividiu o exército muçulmano em vários corpos. O corpo mais forte e a força primária eram as tropas lideradas pelo bravo guerreiro Khalid Ibn Walid. Este corpo foi usado para combater a mais poderosa das forças rebeldes.
Outros corpos receberam áreas de importância secundária para levar as tribos apóstatas menos perigosas à submissão. O plano de Abu Bakr foi primeiro eliminar Najd e a Arábia Ocidental perto de Medina. Depois ele atacou Malik ibn Nuwayrah e suas forças, entre Najd e al-Bahrayn, e finalmente se concentrou contra o inimigo mais perigoso, o autointitulado profeta, Musaylimah e seus aliados em al-Yamama.
Depois de uma série de campanhas de sucesso, Khalid Ibn Walid derrotou Musaylimah na Batalha de Yamama, em Dezembro de 632. A Campanha da Apostasia foi completada durante o final do décimo primeiro ano da Hégira, e em 633 a Península Arábica começou o ano unificada, sob a liderança de Abu Bakr.
As Contribuições e a morte de Abu Bakr
O Califado de Abu Bakr durou 27 meses. Nos últimos meses de seu governo, ele enviou o general Khalid ibn al-Walid a conquistas contra o Império Sassânida na Mesopotâmia e contra o Império Bizantino na Síria, mais especificamente contra seus vassalos árabes lácmidas e gassânidas.
Isso colocaria em movimento uma trajetória histórica, continuada mais tarde por Omar e Osman Ibn Affan, que em apenas algumas poucas décadas levaria a um dos maiores impérios que já existiram. Abu Bakr foi fundamental na preservação do Alcorão em forma escrita.
Diz-se que após a vitória duramente conquistada sobre Musaylimah na Batalha de Yamama, em 632, Omar Ibn Khattab viu que muitos dos muçulmanos que tinham memorizado o Alcorão, de 300 a 700, haviam morrido no combate.
Temendo que o Alcorão se perdesse ou se corrompesse, Omar pediu ao califa Abu Bakr que autorizasse a compilação e a preservação do Alcorão em formato escrito, pois, até então, o texto sagrado islâmico era uma tradição oral, compilada por vezes, mas nunca reunida ou encadernada.
Após a hesitação inicial, Abu Bakr fez uma comissão liderada por Zayd ibn Thabit, que incluiu os memorizadores do Alcorão e Omar, para coletar todos os versos do livro.
Depois de coletar todos os versos do Alcorão de textos, em posse de vários companheiros do Profeta, Zayd Ibn Thabit e membros de seu comitê, verificaram a leitura comparando com aqueles que haviam memorizado o Alcorão.
Depois de estarem satisfeitos por não terem perdido nenhum versículo ou cometido erros ao ler ou escrever, o texto foi escrito como um único manuscrito e apresentado em forma de códice ao califa Abu Bakr. Acredita-se que esse processo tenha ocorrido dentro de um ano da morte de Muhammad, quando a maioria de seus companheiros ainda estavam vivos.
Em 23 de agosto de 634, Abu Bakr adoeceu e não se recuperou. Ele desenvolveu febre alta e foi confinado à cama. Sua doença foi prolongada, e quando sua condição piorou, ele sentiu que seu fim estava próximo.
Percebendo que sua morte estava próxima, ele mandou chamar Ali e pediu-lhe que realizasse seu banho ritual, visto que Ali também o fizera por Muhammad. Abu Bakr sentiu que deveria nomear seu sucessor para que a questão não fosse motivo de dissensão entre os muçulmanos após sua morte, embora já houvesse controvérsia sobre Ali não ter sido nomeado.
Apesar das reservas iniciais de seus conselheiros, Abu Bakr reconheceu as proezas militares e políticas em Omar e desejou que ele o sucedesse como califa. A decisão foi consagrada em seu testamento e, com a morte de Abu Bakr em 634, Omar Ibn Khattab foi confirmado no cargo.
O Califado de Omar Ibn Khattab
Apesar de quase todos os muçulmanos terem jurado lealdade a Omar, ele era mais temido que amado. O seu primeiro desafio foi conquistar seus súditos e membros do Majlis al Shura, o conselho do governo islâmico.
Ele era um orador talentoso e o foco inicial de sua administração estava no bem-estar das pessoas pobres e desprivilegiadas. Além disso, Omar, a fim de melhorar sua reputação e relação com os Banu Hashim, o clã de Ali, entregou-lhes suas propriedades disputadas em Khaybar.
Nas Guerras de Apostasia, milhares de prisioneiros de tribos rebeldes e apóstatas foram levados como escravos durante as expedições. Omar ordenou a anistia geral para os prisioneiros e sua imediata emancipação. Isso tornou-o bastante popular entre as tribos beduínas.
Com o apoio público necessário com ele, Omar tomou uma decisão corajosa de remover o tenaz Khalid ibn Walid do comando supremo do fronte romano das conquistas islâmicas.
O governo de Omar era unitário, onde a autoridade política soberana era o califa. O califado Rashidun era dividido em províncias e alguns territórios autônomos, que tinham aceitado a suserania do califado. As províncias eram administradas pelos governadores provinciais ou wali, cuja seleção era feita pessoalmente por Omar, que era extremamente exigente.
Províncias foram divididas em distritos, havia cerca de 100 distritos no império. Cada distrito ou cidade principal estava sob a responsabilidade de um governador júnior ou de um amir, geralmente nomeado pelo próprio Omar, mas, ocasionalmente, eles também eram nomeados pelo governador da província.
Códigos de Conduta e Conquistas
Muitos códigos rígidos de conduta deveriam ser obedecidos pelos governadores e funcionários do Estado. Os principais oficiais eram obrigados a viajar para Meca, por ocasião do Hajj, durante o qual as pessoas eram livres para apresentar qualquer queixa contra eles.
Omar era extremamente contra qualquer forma de corrupção dentre os administradores das províncias subordinados a ele, o que fez com que ele tomasse fortes medidas para que subornos e desvio de verbas estatais não ocorressem.
Ele foi o primeiro a estabelecer um departamento especial para a investigação de denúncias contra os oficiais do Estado. Este departamento atuou como o tribunal administrativo, onde o processo judicial era pessoalmente liderado por Omar. O departamento ficava sob a responsabilidade de Muhammad ibn Maslamah, um dos homens de maior confiança do califa.
Em casos importantes, Muhammad ibn Maslamah era designado por Omar para ir ao local, investigar a acusação e agir. Em algumas situações, uma comissão de inquérito era constituída para investigar a acusação, em outras, os oficiais acusados poderiam ser convocados a Medina e acusados no tribunal administrativo de Omar.
Omar era conhecido por este serviço de inteligência, através do qual ele fez de seus funcionários responsáveis. Este serviço também foi dito ter inspirado respeito em seus súditos. Outro aspecto importante do governo de Omar era que ele proibia qualquer um de seus governadores e agentes de se engajar no comércio ou em qualquer tipo de negócios, enquanto estivesse em uma posição de poder.
Em certa ocasião, um de seus emires, com o nome de Al Harith ibn K’ab ibn Wahb, foi encontrado com uma quantia de dinheiro além do seu salário. Omar o perguntou sobre sua riqueza e Al Harith respondeu que havia ganhado com sua atividade extra como comerciante. Omar disse: ”Por Deus, nós não mandamos você para se engajar no comércio!”, e retirou todos os lucros que o emir havia feito.
As conquistas militares foram parcialmente encerradas entre 638 e 639, durante os anos de grande fome na Arábia e praga no Levante. Durante seu reinado, Omar anexou o Levante, o Egito, Cirenaica, Tripolitânia, Fezzan, Anatólia Oriental, quase todo o Império Persa Sassânida, incluindo a Bactria, Pérsia, Azerbaijão, Armênia, Cáucaso e Makran, ao califado Rashidun.
De acordo com uma estimativa, mais de 4.050 cidades foram capturadas durante essas conquistas militares. Antes de sua morte, em 644, Omar havia cessado todas as expedições militares, aparentemente para consolidar seu governo no recentemente conquistado Egito romano e no recém-conquistado Império Sassânida (642-644).
Em sua morte, em novembro de 644, seu governo se estendeu da atual Líbia, no oeste, até o rio Indo, no leste, e o rio Oxus, no norte.
Para viver perto dos pobres, o califa Omar morava em uma simples cabana de barro sem portas e andava pelas ruas todas as noites. Depois de consultar os pobres, Omar estabeleceu o primeiro Estado de bem-estar social, com o programa do Bayt al-mal.
O Bayt al-mal ajudava os muçulmanos e não-muçulmanos pobres, necessitados, idosos, órfãos, viúvas e deficientes. O Bayt al-mal durou centenas de anos sob o califado Rashidun, no século VII, e continuou durante o período omíada, entre 661 a 750, indo até a era dos abássidas.
Populações locais de judeus e cristãos, anteriormente perseguidos como minorias religiosas e tributados pesadamente para financiar as guerras bizantinas-sassânidas, muitas vezes ajudaram os muçulmanos a tomar suas terras dos bizantinos e persas, resultando em conquistas excepcionalmente velozes.
À medida que novas áreas se juntavam ao Estado Muçulmano, elas também se beneficivam do livre comércio, enquanto negociavam com outras áreas. Buscando estimular o comércio, no Islã as transações e produtos não são tributadas, mas sim a renda, através do zakat.
Desde a chamada Constituição de Medina, redigida por Muhammad, judeus e cristãos continuaram a usar suas próprias leis no Estado Islâmico e tiveram seus próprios juízes.
Morte de Omar e a Escolha do Novo Califa
Em 644, Omar foi assassinado por um escravo persa de nome Piruz Nahavandi, conhecido nas fontes islâmicas como Abu Lulu, em uma possível retaliação vingativa pela total conquista do Império Sassânida pelos muçulmanos, ou uma rixa pessoal de Piruz com Omar.
Ele atacou Omar enquanto este liderava as orações da manhã, apunhalando-o seis vezes na barriga e, finalmente, no umbigo, isso se mostrou fatal. Omar ficou sangrando abundantemente enquanto Piruz tentava fugir, mas pessoas de todos os lados correram para capturá-lo.
Em seus esforços para escapar, é relatado que ele feriu outras doze pessoas, das quais seis ou nove morreram depois, antes de se cortar com sua própria espada para cometer suicídio. Omar morreu dos ferimentos três dias depois. De acordo com seu testamento, ele foi enterrado na Mesquita do Profeta em Medina, ao lado de Muhammad e Abu Bakr.
Em seu leito de morte, Omar Ibn al-Khattab nomeou uma junta de seis membros e, dentre eles, um deveria ser o próximo califa. O grupo consistia em Sa’d Ibn Abi Waqqas, Abdul Rahman bin Awf, Zubayr ibn al-Awwam, Talha ibn Ubayd Allah, Ali Ibn Abi
Talib e Osman Ibn Affan.
Para regular o grupo e garantir que nenhuma pessoa pararia o processo, Omar disse que todos deveriam concordar unanimemente sobre quem deveria ser o califa e ordenou a seu filho, Abdullah Ibn Umar, que matasse qualquer pessoa cuja opinião fosse diferente do resto do grupo.
Dos seis membros, Zubair retirou sua candidatura em favor de Ali. Sa’d ibn Abi Waqas retirou-se a favor de Osman. Dos três candidatos restantes, Abdul Rahman decidiu retirar-se, deixando Osman e Ali. Abdur Rahman foi indicado como árbitro para escolher entre os dois candidatos restantes. Entrando em contato com os dois candidatos separadamente, ele acabou optando por Osman.
O Califado de Osman Ibn Affan
Osman era um homem de negócios astuto e um comerciante bem-sucedido desde a juventude, o que contribuiu enormemente para o Califado Rashidun.
Ele fez algumas reformas em relação às austeridades e restrições do califado anterior de Omar, dando maior liberdade em questões financeiras do Estado para seus súditos e administradores, criando uma grande prosperidade comercial por todo califado.
Durante seu governo, ele descentralizou o controle da figura do califa no comando do exército, favorecendo comandantes de sua confiança e parentesco, como Abdullah ibn Amir, Muawiyah e Abdullah ibn Saad ibn Abi as-Sarâ. Consequentemente, esta expansão mais independente permitiu uma conquista territorial mais abrangente, até as fronteiras de Sindh, no atual Paquistão.
Muawiyah havia sido nomeado governador da Síria por Omar em 639, para impedir o assédio marinho pelos bizantinos, durante as guerras árabe-bizantinas. Esta nomeação ocorreu depois que seu irmão mais velho, Yazid ibn Abi Sufyan, governador da Síria, morreu devido a praga, junto com Abu Ubaidah ibn al-Jarrah, o governador antes dele e 25.000 outras pessoas.
Agora, sob o governo de Osman, em 649, Muawiyah foi autorizado a estabelecer uma marinha, tripulada por cristãos monofisistas, coptas e marinheiros cristãos sírios jacobitas e tropas muçulmanas. Isto resultou na derrota da marinha bizantina na Batalha dos Mastros em 655, abrindo o Mediterrâneo para os avanços islâmicos posteriores.
Por volta do ano de 651, Osman enviou Abdullah ibn Zubayr e Abdullah ibn Saad para liderar a expedição de reconquistas em direção ao Magrebe africano, onde encontraram o exército de Gregório Patrício, Exarca da África e parente de Heráclio, imperador bizantino.
As forças muçulmanas conseguiram uma vitória bem sucedida, e Gregório fora morto na Batalha de Sufetula. Algumas fontes muçulmanas afirmam que após a conquista do norte da África ser concluída, Abdullah ibn Sa’d continuou a expansão rumo a Ibéria.
Na descrição desta campanha, dois dos seus generais, Abdullah ibn Nafiah ibn Husain, e Abdullah ibn Nafi ‘ibn Abdul Qais, foram incumbidos de invadir as zonas costeiras da atual Espanha por via marítima com uma força berbere, enquanto o causus beli ainda é um mistério.
Não se sabe onde a força muçulmana desembarcou, que resistência encontraram e que partes da Espanha eles realmente conquistaram. Qualquer colonização maior não veio a se concretizar de fato até o Califado Omíada e a campanha de Tariq Ibn Ziyad, em 711. As campanhas militares sob o governo de Osman foram geralmente bem-sucedidas, exceto algumas no reino da Núbia, no baixo Nilo.
A oposição ao Califado de Osman
Diferentemente de seu antecessor, que mantinha a disciplina com mãos de ferro, Osman era menos rigoroso com seu povo e consigo mesmo.
Ele era membro do próspero clã dos Banu Umayyah e, também, o único representante dos patrícios de Meca, entre os primeiros companheiros do Profeta, com suficiente prestígio para ser um candidato ao califado na eleição que se sucedeu após a morte de Omar.
Osman logo caiu sob a influência das famílias dominantes de Meca e, um após o outro, os altos cargos do Império foram para os membros dessas famílias. Devido a essa política na nomeação de seus subordinados, o califa mais próspero em todos os âmbitos até então, começou a enfrentar uma crescente oposição.
A resistência contra Osman se originou devido à maneira que ele escolhia seus governantes. O califa favorecia os membros da família sobre quaisquer outros, acreditando que, ao fazer isso, ele seria capaz de exercer mais influência sobre como o califado era administrado e, consequentemente, melhorar o sistema que ele trabalhava para estabelecer.
Porém, ao contrário do que Osmar esperava, os seus nomeados acabaram por ter mais controle sobre como ele conduzia os negócios do que ele havia planejado originalmente. Eles foram tão longe que chegaram ao ponto de impor o autoritarismo sobre suas províncias.
De fato, muitas cartas anônimas foram escritas para os principais companheiros do Profeta, reclamando da suposta tirania dos governadores nomeados por Osman. Isso contribuiu para a agitação no império e, finalmente, Osman teve que investigar o assunto em uma tentativa de averiguar a autenticidade dos rumores e tentar solucionar uma possível rebelião.
Por volta de 654, Osman chamou todos os governadores de suas 12 províncias para Medina, a fim de discutir o problema. Mais tarde, no Majlis al Shurah, o conselho do governo Islâmico, sugeriu-se a Osman que agentes confiáveis fossem enviados a várias províncias para investigar o súditos e relatar as fontes de tais rumores.
Osman, então, enviou seus agentes para as principais províncias. Muhammad ibn Maslamah foi enviado para Kufa, Usama ibn Zayd foi enviado para Basra, Ammar ibn Yasir foi enviado para o Egito, enquanto Abd Allah Ibn Umar foi enviado para a Síria.
Os emissários que foram enviados a Kufa, Basra e Síria, apresentaram seus relatórios a Osman, nos quais as três províncias estavam em boa situação e seus súditos satisfeitos de modo geral. Ammar ibn Yasir, o emissário que havia ido ao Egito, no entanto, não retornou a Medina.
Ele, juntamente com outros egípcios, intensificaram as queixas em relação a Osman e continuaram com a propaganda em favor do califado de Ali. Ammar ibn Yasir era afiliado a Ali, que, no momento, não liderava qualquer rebelião e não encorajava qualquer levante armado.
Abdullah ibn Saad, o governador do Egito, relatou as atividades da oposição no Egito. Ele queria agir contra Muhammad ibn Abu Bakr, filho adotivo de Ali e filho biológico de Abu Bakr, o primeiro califa, Muhammad bin Abi Hudhaifa, filho adotivo de Osman, e Ammar ibn Yasir.
Em 655, Osman conclamou as pessoas que tinham alguma queixa contra o governo para se reunirem em Meca para o Hajj. Ele prometeu-lhes que todas as suas queixas legítimas seriam corrigidas. Ele dirigiu os governadores por todo o império para que fossem a Meca, por ocasião do Hajj.
Em resposta ao chamado de Osman, a oposição veio em grandes delegações, de várias cidades, para apresentar suas queixas antes do encontro. Os rebeldes perceberam que as pessoas em Meca apoiavam a defesa oferecida por Osman e não estavam dispostas a ouvi-los. Essa foi uma grande vitória psicológica para o califa.
Antes de retornar à Síria, o governador Muawiyah, primo de Osman, sugeriu que o califa fosse com ele à Síria, já que a atmosfera ali era pacífica. Osman rejeitou sua oferta, dizendo que ele não queria deixar a cidade de Muhammad, referindo-se a Medina.
Muawiyah então sugeriu que ele fosse autorizado a enviar uma força armada da Síria para Medina, para proteger Osman contra qualquer possível tentativa dos rebeldes de prejudicá-lo. Ele também rejeitou, dizendo que as forças sírias em Medina seriam um incitamento à guerra civil, e ele não poderia fazer parte de tal movimento.
A política do Egito desempenhou o papel principal na guerra de propaganda contra o califado, então, Osman convocou Abdullah ibn Saad, o governador do Egito, para Medina para consultar-se com ele sobre o curso de ação que deveria ser adotado.
Abdullah ibn Saad veio para Medina, deixando os assuntos do Egito para seu vice, e na sua ausência, Muhammad bin Abi Hudhaifa organizou um golpe de estado e tomou o poder.
Ao saber da revolta no Egito, Abdullah apressou-se, mas Osman não estava em condições de oferecer-lhe qualquer assistência militar e, consequentemente, Abdullah ibn Saad não conseguiu recuperar o Egito.
O atentado contra Osman
Do Egito, um contingente de cerca de mil pessoas foi enviado a Medina, com instruções para assassinar Osman e derrubar o governo. Contingentes semelhantes marcharam de Kufa e Basra para a Cidade do Profeta, com o objetivo de contatar os líderes sobre a opinião pública.
Os representantes do contingente do Egito queriam, mais uma vez, tentar entronar Ali, e ofereceram-lhe o califado em sucessão a Osman, que Ali recusou.
Ao propor alternativas a Osman como califa, os rebeldes neutralizaram a maior parte da opinião pública em Medina, e os ainda leais a Osman não podiam mais oferecer uma frente unida. O califa ainda teve o apoio ativo dos Banu Umayyah e algumas outras pessoas em Medina.
Estando agora em grande quantidade, os rebeldes passaram a cercar a casa do próprio califa. Com a partida dos peregrinos de Medina para Meca, as mãos dos rebeldes foram ainda mais fortalecidas e, como consequência, a crise se aprofundou ainda mais.
Os rebeldes entenderam que depois do Hajj, os muçulmanos reunidos em Meca, de todas as partes do mundo islâmico, poderiam marchar para Medina para aliviar o cerco à casa de Osman. Por isso, decidiram agir contra o califa antes que a peregrinação terminasse.
Durante o cerco, Osman foi questionado por seus partidários, que superavam em número os rebeldes, para deixá-los lutar contra eles e derrotá-los. O califa os impediu, em um esforço para evitar o derramamento de sangue entre os muçulmanos. Infelizmente para Osman, a violência erodiu.
Os portões de sua casa foram fechados e guardados pelo renomado guerreiro Abd-Allah ibn al-Zubayr. Os filhos de Ali, Hassan e Hussein, também estavam entre os guardas.
Em 20 de julho de 656, encontrando o portão da casa de Osman fortemente guardado por seus partidários, os rebeldes egípcios subiram na parede dos fundos e se arrastaram para dentro, deixando os guardas no portão inconscientes do que estava acontecendo lá dentro.
Os rebeldes entraram em seu quarto e golpearam sua cabeça, enquanto Osman lia o Alcorão. Naila, a esposa de Osman, atirou-se em seu corpo para protegê-lo e levantou a mão para desviar um golpe de espada, perdendo seus dedos no processo. Um segundo golpe desferido acabou por tirar a vida de Osman.
Alguns dos servos do califa contra-atacaram, um dos quais matou o assassino e, por sua vez, foi morto pelos rebeldes. Os desordeiros tentaram decapitar o cadáver do califa, mas suas duas viúvas, Nailah e Umm al-Banin, se jogaram pelo corpo e gritaram, dissuadindo os rebeldes.
Eles saíram saqueando a casa, despertando os guardas no exterior com o barulho e os gritos das mulheres, mas quando chegaram em socorro, já era tarde. O califa foi então levado ao seu túmulo nas roupas que vestia, sem ter seu cadáver lavado, como manda a tradição islâmica em relação aos mártires, e enterrado no cemitério de Jannat al-Baqi.
O Califado de Ali
Após o assassinato do terceiro califa Rashidun (termo árabe que significa “virtuosos” ou “probos” e designa os quatro primeiros califas), Osman Ibn Affan e os Companheiros de Muhammad em Medina finalmente escolheram Ali para ser o novo califa, já que foi preterido pela liderança três vezes, desde a morte do Profeta.
Logo depois disso, Ali demitiu vários governadores provinciais, alguns dos quais eram parentes de Osman, e os substituiu por assessores de confiança como Malik al-Ashtar e Salman, o Persa. Ali, então, transferiu sua capital de Medina para Kufa, uma cidade de guarnição muçulmana no atual Iraque.
As demandas pela vingança do assassinato de Osman aumentaram entre partes da população, e um grande exército de rebeldes liderados por Zubayr, Talha e a viúva do Profeta Muhammad, Aisha, partiram para combater os perpetradores.
O exército chegou a Basra e capturou-a, sobre o qual supostos sedicionistas foram condenados à morte. Posteriormente, Ali voltou-se para Basra e o exército do califa se encontrou com o exército de muçulmanos que exigiam vingança pelo assassinato de Osman.
Embora Ali e os líderes da força adversária, Talha e Zubayr, não quisessem lutar, uma batalha estourou à noite entre os dois exércitos. Diz-se, de acordo com as tradições muçulmanas, que os rebeldes envolvidos no assassinato de Osman iniciaram o combate, pois temiam que, como resultado da negociação entre Ali e o exército inimigo, os assassinos de Osman fossem caçados e mortos.
A batalha travada foi a primeira batalha entre muçulmanos e é conhecida como a Batalha do Camelo. O califado de Ali saiu vitorioso e a disputa foi resolvida. Os eminentes companheiros de Muhammad, Talha e Zubayr, foram mortos na batalha e Ali enviou seu filho Hassan para escoltar Aisha de volta a Medina.
Após este episódio da história islâmica, outro grito de vingança pelo sangue de Osman surgiu. Desta vez foi Mu’awiya, seu amado primo e governador da província da Síria. Ali lutou contra as forças de Mu’awiya na Batalha de Siffin, levando a um impasse, e perdeu uma arbitragem controversa, que terminou com o árbitro Amr ibn al-As pronunciando seu apoio a Mu’awiya.
Depois disso, Ali foi forçado a lutar contra os rebeldes khawarij na Batalha de Nahrawan, uma facção de seus ex-partidários que, como resultado de sua insatisfação com a arbitragem, se opuseram tanto a Ali quanto a Mu’awiya.
Enfraquecido por esta rebelião interna e pela falta de apoio popular em muitas províncias, as forças de Ali perderam o controle sobre a maior parte do território do califado para Mu’awiya enquanto grandes seções do império, como a Sicília, Norte da África, as áreas costeiras da Espanha e alguns fortes na Anatólia, também foram perdidos pelos muçulmanos.
Ali foi assassinado por Ibn Muljam como parte de uma conspiração khawarij para assassinar todos os diferentes líderes islâmicos, significando o fim da guerra civil, enquanto os khawarij não conseguiram assassinar Mu’awiya e Amr ibn al-As.
O filho de Ali, Hassan, neto do Profeta Muhammad, assumiu brevemente o califado e chegou a um acordo com Mu’awiya para consertar as relações entre os dois grupos de muçulmanos, que eram leais a um dos dois homens. O tratado afirmou que Mu’awiya não nomearia um sucessor durante o seu reinado e que ele deixaria o mundo islâmico escolher o próximo líder.
Hassan morreu envenenado, e Mu’awiya ganhou o controle do califado e fundou o Califado Omíada, o primeiro regime hereditário da história do Islã, quebrando o tratado firmado com Hassan e acabando com a tradição do conselho eletivo, marcando o fim do Califado Rashidun, em 661.
Bibliografias:
- Barnaby Rogerson (2010), The Heirs Of The Prophet Muhammad: And the Roots of the Sunni-Shia Schism.
- Wilferd Madelung (1998), The Succession to Muhammad: A Study of the Early Caliphate, Cambridge University Press.
- Donner, Fred, The Early Islamic Conquests, Princeton University Press, 1981.
- Albert Hourani, A History of the Arab Peoples, Faber and Faber, 1991.
OBS: Faremos artigos separados para tratar das conquistas territoriais do Califado Rashidun, especificamente na Africa, Levante e Pérsia. O artigo anterior foi um apanhado geral dos principais eventos ocorridos durante o Califado. Eventos como a morte de Hussein e início dos Omíadas também serão cobertos em outros textos separadamente.