O Islã como conhecemos “oficialmente” surgiu na primeira metade do século VII na Arábia, porém em questão de poucas décadas após a morte de Muhammad em 632 d.C. a religião já havia se espalhado por todos os continentes conhecidos na época. Em verdade, o próprio profeta já havia tido contato com outras regiões do mundo através de mensageiros, levando assim a mensagem do Islã para outras nações ainda em vida. Contudo, a maior parte da grande expansão islâmica para além dos territórios árabes ocorreu após o seu falecimento, sendo essa empreitada levada à cabo principalmente pelos grandes califas Rashidun e Omíadas.

Nesse processo de expansão do governo muçulmano, era inevitável que a religião acompanhasse os conquistadores. Muito embora algumas regiões conquistadas demoraram séculos para se tornarem de maioria islâmica (com a própria Península Ibérica), o primeiro contato de alguns povos com o Islã ocorreu justamente no momento da expansão do estado muçulmano. Isso, como seria esperado, resultou em escritos dos povos conquistados a respeito de seus conquistadores, por vezes observações sobre a religiosidade desses novos governantes. Uma vez que os locais conquistados em geral eram majoritariamente de outras religiões, foi também inevitável o surgimento de polêmicas apologéticas contra o Islã, principalmente para tentar demonstrar a suposta falsidade da religião islâmica sob a luz da religião do povo conquistado. Muitos dos territórios conquistados pelos muçulmanos no Oriente Médio e África pertenciam ao Império Bizantino, ocasionando em vários escritos de autores cristãos sobre os novos governantes, sua religião e seu profeta.

Muito embora as doutrinas islâmicas tenham sido um assunto de elevada importância para os polemistas de outras religiões, talvez o principal de todos os aspectos do Islã que tenha sido debatido nos meios apologéticos foi justamente a figura de seu profeta: Muhammad.

Muhammad sempre esteve no centro do discurso europeu sobre o Islã. Para os cronistas da cruzada medieval, ele era um ídolo adorado pelos “sarracenos”, ou um heresiarca astuto que operou falsos milagres para afastar os árabes do cristianismo; ambas as representações fizeram dele a raiz do erro religioso dos sarracenos e justificaram implicitamente a cruzada para arrancar a Terra Santa do controle sarraceno. Para o leitor cristão entendido nas Escrituras, Muhammad era quase uma espécie de Simão Mago para muitos autores que escreviam contra ele.

Essas imagens controversas, forjadas na Idade Média, mostraram-se de grande valia política nesse mesmo período e posteriormente. Nos séculos XIX e XX, variantes da imagem de Muhammad como um “impostor” foram usadas para justificar o colonialismo europeu em terras muçulmanas e para encorajar o trabalho de missionários cristãos.

A figura de Muhammad no Ocidente, contudo, nem sempre provocou medo, desprezo ou ódio, mas por vezes admiração e curiosidade. O que o profeta jamais provocou nos europeus e cristãos foi indiferença.

O presente artigo tem como foco, portanto, o estudo e exposição de algumas das primeiras visões cristãs e ocidentais a respeito do profeta do Islã, assim como diferentes perspectivas ao longo dos séculos. Nesse artigo, o leitor irá encontrar algumas das primeiras fontes não-islâmicas mencionando o Islã, assim como algumas polêmicas apologéticas cristãs e também diferentes visões ocidentais (cristãs e não-cristãs) a respeito principalmente da figura de Muhammad.

As primeiras fontes não islâmicas sobre o profeta

Para estudiosos que costumam utilizar o método histórico crítico, é praticamente crucial que determinada figura religiosa tenha sua existência atestada em diferentes fontes além daquelas utilizadas pelos próprios fiéis. Assim, para atestar a existência de alguém como Jesus Cristo ou Muhammad, é necessário por vezes ir além das fontes sagradas do cristianismo e do Islã, sem necessariamente descartar a Bíblia e o Alcorão (e livros de hadith) como obras complementares para um estudo quase independente dessas mesmas fontes.

Como Jesus nos estudos cristãos, a existência de Muhammad é consenso histórico entre os estudiosos do Islã. Naturalmente, devido aos métodos seculares, a divindade de Cristo e a profecia de Muhammad costumam ser ignoradas. A existência histórica dessas figuras, contudo, é algo negado somente por pouquíssimos estudiosos, por vezes com relevância praticamente (ou totalmente) nula no meio acadêmico.

Provavelmente o primeiro texto não-islâmico que faz referência clara a Muhammad é o conhecido Doctrina Iacobi, datado de 634 d.C., apenas dois anos após a morte do profeta:

Os primeiros testemunhos que chegaram até nós sobre a existência de Muhammad, portanto, não estão na língua árabe, mas sim em obras escritas em línguas como o grego e o siríaco. Um dos primeiros e mais importantes testemunhos históricos do profeta Muhammad pode ser encontrado em um tratado bizantino-apologético conhecido como Doutrina Iacobi nuper baptizati (Os Ensinamentos de Jacó, o Recém Batizado). Frequentemente datado por historiadores modernos em julho de 634 d.C. - meros dois anos após a morte de Muhammad - o tratado curiosamente afirma que um profeta apareceu "entre os sarracenos" que afirmava possuir "as chaves do paraíso". (“Sarracenos” é o nome grego contemporâneo mais comum para os nômades e moradores do oásis da Arábia). O profeta sarraceno não é mencionado na obra, mas é, no entanto, facilmente reconhecível pela descrição de sua mensagem (ANTHONY, 2020, p. 65).

Caso a datação do Doctrina Iacobi esteja correta e de fato seja de 634, será o texto mais antigo depois do Alcorão a mencionar os ensinamentos do “profeta árabe”.

Dando continuidade, um dos primeiros textos cristãos que faz clara menção ao profeta pelo nome pode ser encontrado na crônica síria de Tomás, o Presbítero. Devido ao conteúdo de seus escritos, como não ter mencionado a morte do imperador Heráclio (641) e ter citado a morte de seu irmão durante as invasões árabes em 636 em Tur Abdin, é provável que Tomás tenha escrito sua crônica por volta de meados da década de 640 [1]. Em sua crônica, o presbítero escreve:

No ano 945, indicção 7, na sexta-feira de 4 de fevereiro (634) às nove horas, houve uma batalha entre os Romanos e os Árabes de Muhammad (tayyaye d-Mhmt). (HOYLAND, 2000, p. 278, in MOTZKI,).

Hoyland (2000) afirma que uma das principais implicações da citação acima é de que Muhammad seria alguma espécie de líder militar. Quando analisamos a tradição islâmica, porém, se torna uma afirmação impossível para a provável época em que a crônica de Tomás foi escrita, uma vez que na época da confecção das obras do presbítero sírio, o profeta já havia falecido. Temos aqui um conflito de informações entre os historiadores muçulmanos e a crônica cristã.

Para complicar ainda mais o estudo, essa não é a única fonte não-islâmica que menciona Muhammad estando vivo durante as invasões árabes. Em outra crônica síria, esta escrita por volta de 660 narrando o reinado de Yazdigird III, podemos ler:

E então Deus levou os Ismaelitas contra eles igual areia na beira do mar; o seu líder (mdabbrana) era Muhammad (Mhmd), e nem paredes ou muralhas, nem escudo ou armadura foram capazes de resistir: eles dominaram toda a terra dos Persas (Ibd, p. 278).

Há ainda o escrito de um bispo armênio chamado Sebeos a respeito da primeira fitnah (guerra civil) onde Muwayia se saiu como vencedor, entre os anos 656-61. Nesse texto, Muhammad aparece pregando para os árabes. Posteriormente, o arquidiácono do patriarca alexandrino Abba Simão, George, narrou os ocorridos na época do surgimento do heresiarca Marcião até o período do rei muçulmano Suleyman ibn Al-Malik (r. 715-717). Neste último relato, o clérigo cristão inicialmente narra a conquista islâmica de Damasco, Síria e a travessia pelo Jordão.

Outro texto, dessa vez uma obra espanhola do século VIII e preservada em latim, afirma que durante as invasões nas províncias árabes, sírias e da Mesopotâmia, havia um líder entre eles chamado Muhammad. Ainda no século VIII, mais especificamente por volta de 775, duas outras crônicas (anônimas) surgem com afirmações semelhantes às anteriores, ou seja, de que os muçulmanos eram liderados por um indivíduo chamado Muhamamd. [2]

Em uma dessas obras anônimas podemos ler:

Em 930 de Alexandre (618-19), Heraclius e os Romanos adentraram Constantinopla, e Muhammad e os árabes avançaram pelo sul, chegaram e dominaram (Ibd, p. 279). [3]

Como é notório, as primeiras fontes a respeito do Islã focaram muito na descrição dos acontecimentos, isto é, breves relatos das conquistas árabes. Algo que chama atenção, porém, é a menção de Muhammad enquanto o líder dos árabes, muito embora saibamos que o profeta já havia falecido quando essas obras foram escritas e quando as conquistas fora da Península Arábica começaram. O mesmo também pode ser visto na crônica de Teófilo de Edessa, astrólogo do califa al-Mahdi.

Descrições do profeta

Muito se falava a respeito de Muhammad, porém se fazia necessário maiores detalhes a respeito desse líder militar que pretensamente teria conquistado os territórios dos romanos e dos persas com tamanho sucesso e em tão pouco tempo. Afinal, quem era Muhammad para as primeiras crônicas não-islâmicas?

O cronista armênio Sebeos por volta da década de 660 descreveu Muhammad como sendo um mercador, e a mesma descrição seria feita novamente no começo do século VIII por Jacó de Edessa. Como muitos leitores sabem, Muhammad de fato foi um comerciante antes do seu período profético, o que é atestado por todas as fontes islâmicas e também consenso entre os acadêmicos ocidentais de estudos islâmicos.

Outra descrição extremamente comum, e talvez a descrição mais comum entre os primeiros escritos cristãos, é de que Muhammad era um rei, um líder político e militar dos árabes. Em uma crônica maronita da década de 650, há inclusive a descrição de uma suposta rivalidade entre Muhammad e Muwaiya, dando a entender de que Muhammad era apenas mais um líder assim como o califa omíada [4].

Em outras descrições mais seculares de Muhammad, o profeta do Islã era uma figura mais semelhante a de um legislador. Um escrito famoso nesse sentido é o do monge João bar Penkaye por volta de 686-87, que chama Muhammad de “guia” (mhaddyana) e “instrutor” (tara).

O profeta na apologética cristã

Além dessas imagens típicas do profeta enquanto líder político, militar e guia dos árabes, a imagem que se tornaria mais comum entre os escritores cristãos após esse primeiro contato com o Islã seria justamente a de Muhammad como falso profeta.

John Tolan (2019) na sua obra Faces of Muhammad que busca resgatar as diferentes percepções ocidentais a respeito do profeta do Islã desde o medievo até os dias de hoje, expõe diversas faces e caricaturas de Muhammad no Ocidente Cristão, que vão desde uma divindade politeísta na Canção de Rolando até um grande reformador admirado por muitos dos Iluministas. Entre essas diversas imagens, um lugar comum foi (e ainda é) de que se tratava de um falso profeta, as vezes retratado como alguém beligerante, lascivo e assim por diante.

Diversos foram os escritos sobre e principalmente contra o Islã, incluindo por parte de doutores da Igreja, como São João Damasceno e São Tomás de Aquino. Não obstante, autores famosos como Raimundo Llull também deram sua “contribuição” às críticas ao Islã, juntamente com clássicos da literatura cristã medieval, como a famosa Legenda Áurea e a já mencionada Canção de Rolando. O Islã, era, portanto, o espectro que rondava a Europa no Medievo.

Em alguns textos, Muhammad é descrito apenas como profeta, uma vez que esses escritores cristãos apenas descreveram o que os árabes acreditavam a respeito dele, sem entrar em méritos apologéticos. Já outros escritos, embora não considerassem Muhammad um profeta, afirmavam que pelo seu caráter e atitudes o líder dos árabes teria trilhado pelo “caminho profético”, se assemelhando aos profetas descritos na Bíblia. Todavia, o que mais marcou a respeito dos escritos no meio cristão foi justamente o combate travado pelos apologistas de Cristo contra as doutrinas islâmicas, ou seja, a negação de que Muhammad não era profeta de Deus.

Muito embora o principal tema de debate entre cristãos e muçulmanos ao longo da história tenha sido justamente a divindade de Cristo, a figura de Muhammad não foi ignorada pelos defensores da fé cristã. Abordado de diferentes formas, como visto anteriormente, o profeta do Islã foi de alguém que havia recuperado a tradição monoteísta na Arábia a falso profeta em um piscar de olhos.

Algo que chama atenção nas respostas cristãs à profecia de Muhammad é de que costumam ser muito parecidas umas com as outras. Dessa maneira, em geral ler uma resposta cristã é quase como ler todas as demais. Assim, podemos resumir as principais polêmicas em dois tipos principais de argumentos, que serão abordados abaixo.

A primeira espécie de argumento foi encabeçada principalmente por São João Damasceno, sendo talvez o principal apologista cristão contra a religião islâmica durante o período medieval e tendo seus argumentos replicados ao longo dos séculos por outros autores cristãos que eventualmente abordaram o Islã em seus escritos. Inicialmente, o argumento de Damasceno poderia ser resumido como a afirmação de que Muhammad não se encaixava no conceito clássico de profeta, pois não foi profetizado pelas escrituras anteriores. A falta de profecias a respeito de Muhammad, portanto, provaria que o profeta do Islã era na verdade um falso profeta.

Esse argumento, contudo, não se sustentaria numa análise a respeito do que os muçulmanos dizem a respeito de Muhammad. Para muitos autores muçulmanos, Muhammad na verdade havia sido profetizado nas escrituras anteriores, muito embora o conceito de “escrituras” seja diferente de um muçulmano para um cristão, não sendo necessária e exclusivamente o cânone bíblico do Antigo e Novo Testamento que encontramos na maioria das bíblias hoje em dia, em que pese os muçulmanos também argumentem com base no mesmo cânone adotado pela maioria dos cristãos de sua época. De qualquer forma, afirmar que não há qualquer exegese muçulmana sobre Muhammad estar previsto nas escrituras anteriores não passa de um erro grosseiro a respeito dos aspectos mais básicos da religião islâmica. Qual a legítima interpretação dos escritos bíblicos é que se tornaria o tema do debate de fato.

O segundo argumento frequentemente usado pelos apologistas cristãos, e isso vemos claramente também em São Tomás de Aquino (que não foi o criador) é de que Muhammad na verdade conquistou os árabes por promessas carnais, ou seja, por incentivos físicos e não espirituais. Em uma famosa discussão que supostamente teria acontecido entre o califa Abdal Malik e o monge Michael de Mar Sabas, o califa inicialmente indagou “e por acaso Muhammad não converteu os persas e os árabes e destruiu seus ídolos?”; diante disso, o monge replicou que Muhammad na verdade havia conquistado os árabes por incentivos carnais e pela força das armas, diferentemente do apóstolo Paulo:

Paulo não possuía espadas nem tesouros. Ele estava labutando com suas mãos e estava sendo provido por isso, e ele estava se conduzindo de acordo com todas [as leis]; ele estava ordenando o jejum e a santidade, não a abominável fornicação. Ele não estava fazendo promessas de comilanças ou casamentos eternos, mas sim de um reino [eterno] (HOYLAND, 2000, p. 288).

A afirmação de que Muhammad converteu os árabes através de promessas carnais ou através da força das armas, embora surgindo no medievo, ainda vemos sendo utilizado até os dias de hoje por apologistas modernos nas redes sociais e em obras de apologética cristã. Encontramos argumentos dessa espécie inclusive em apologistas brasileiros, que por vezes se baseiam na obra do padre Júlio Maria de Lombaerde (que era belga) ou ainda em texto do influente Padre Paulo Ricardo [5].

Baseando-se principalmente em Jõao Damasceno, São Tomás de Aquino também dedicou um trecho de sua vasta obra para abordar o Islã, sendo a sua “refutação” muito popular nos meios apologéticos católicos [6] principalmente no que tange ao tema “milagres de Muhammad” ou o aspecto carnal das supostas promessas feitas pelo profeta do Islã para convencer os árabes da nova religião que ele pregava. Consoante São Tomás, segue abaixo o trecho de sua clássica Suma Contra os Gentios:

A maravilhosa conversão do mundo à Fé cristã é um certíssimo indício dos sinais havidos no passado, que não precisaram ser reiterados no futuro, visto que os seus efeitos são evidentes.

Seria realmente o maior dos sinais miraculosos se o mundo tivesse sido induzido, sem aqueles maravilhosos sinais, por homens rudes e vulgares, a crer em verdades tão elevadas, a realizar coisas tão difíceis e a desprezar bens tão valiosos.Mas ainda, nos nossos dias, Deus, por meio dos Seus santos, não cessa de operar milagres para confirmação da Fé. No entanto, os iniciadores de seitas erróneas seguiram um caminho oposto, como se tornou patente em Maomé, fundador do Islão.

Ele (Maomé) seduziu os povos com promessas referentes aos desejos carnais, excitados que são pela concupiscência. Formulou também preceitos conformes àquelas promessas, relaxando, desse modo, as rédeas que seguram os desejos da carne.

Além disso, não apresentou testemunhos da verdade, senão aqueles que facilmente podem ser conhecidos pela razão natural de qualquer medíocre ilustrado. Além disso, introduziu, em verdades que tinha ensinado, fábulas e doutrinas falsas. Também não apresentou sinais sobrenaturais. Ora, só mediante estes há conveniente testemunho da inspiração divina, enquanto uma acção visível, que não pode ser senão divina, mostra que o mestre da verdade está inspirado de modo invisível. Mas Maomé manifestou ter sido enviado pelo poder das armas, que também são sinais dos ladrões e dos tiranos.

Ademais, desde o início, homens sábios, versados em coisas divinas e humanas, não acreditaram nele. Nele, porém, acreditaram homens que, animalizados no deserto, eram totalmente ignorantes da doutrina divina. No entanto, foi a multidão de tais homens que obrigou os outros a obedecerem, pela violência das armas, a uma lei.

Finalmente, nenhum dos oráculos dos profetas que o antecederam dele deu testemunho, visto que ele deturpou com fabulosas narrativas quase todos os factos do Antigo e do Novo Testamento.Tudo isso pode ser verificado ao estudar-se a sua lei. Já também por isso, e sagazmente pensado, não deixou que os seus seguidores lessem os livros do Antigo Testamento, para que não o acusassem de impostura.

Fica assim comprovado que os que lhe dão fé crêem levianamente (AQUINO, 1990, p. 27-28).

Quem estuda de forma mais aprofundada o Islã, reconhece que Aquino cometeu diversas imprecisões em seu comentário, porém o foco do presente artigo não é fazer uma correção aos autores cristãos e nem adentrar no âmbito da apologética islâmica; em verdade, o objetivo desse artigo é mais simples do que isso: é a mera exposição de algumas das inúmeras visões ao longo da história que os ocidentais, principalmente cristãos, tiveram do Islã e de Muhammad. Não entraremos nesse mérito.

Entre os diversos argumentos proferidos por Tomás de Aquino, algo extremamente comum desde as primeiras polêmicas cristãs contra o Islã é o argumento de Muhammad ter sido uma pessoa lasciva e beligerante. Vimos algo semelhante a isso na afirmação do monge Michael ao debater com o califa Abdal Malik. Combinado a isso há também o que também dizia Raimundo Llull, outro grande nome da literatura cristã medieval: “Maomé foi um enganador que fez um livro chamado Alcorão” (apud COSTA, 2011, n.p.).

Todavia, é pitoresco observar que as imagens cristãs ao longo da história a respeito de Muhammad, por mais semelhantes que sejam umas das outras, por  vezes acabam se contradizendo entre si: ora o profeta do Islã ao mesmo sofria de alucinações e epilepsia; ora era uma pessoa lúcida, porém um grande enganador e mentiroso; outrora era possuído pelos demônios. Por vezes era tudo isso ao mesmo tempo. No caso de Llull, Muhammad era tanto um epiléptico quanto um enganador, assim como o Alcorão era fruto do diabo (COSTA, 2011, n.p.). Apesar das evidentes contradições no meio de uma apologética indecisa, alguns preferiram optar por uma alternativa ou outra. Nesse sentido há a famosa e já citada obra no meio apologético católico brasileiro escrita pelo Padre Júlio Maria de Lombaerde e que já recebeu grande divulgação:

Não era êle, como se tem pretendido às vêzes, um doente, um epiléptico. Ao contrário, sentia em sí uma vida ardente, transbordante, porém repleta de um espiritualismo obsedante, que o colocava muito acima do buliçoso materialismo de seus patrícios (LOMBAERDE, 1954, p. 16).

A opinião do padre se assemelha muito a de alguns dos primeiros cristãos que escreveram sobre o tema, isto é, de que Muhammad, embora não fosse um profeta, foi alguém que reacendeu a chama monoteísta na Arábia e que de fato possuía alguns valores semelhantes aos dos profetas, embora não fosse um deles.

Aqui vemos que o padre descarta a opção de um Muhammad com problemas de ordem psíquica, porém em outros trechos repete argumentos similares aos medievais. Entre as mais famosas afirmações do meio apologético provenientes desde o período medieval é de que Muhammad não realizou milagre algum, tal qual vimos em Aquno. Vejamos na obra de Lombaerde:

Os antigos profetas judeus vieram com os milagres e os homens levaram-nos à morte ou à irrisão. Maomé não faz milagres, nem tenciona deixar-se matar: teve que fugir após mil maus tratos e humilhações. Jesús Cristo veiu com os milagres e as palavras divinas. Maomé virá agora com a espada. E' uma vida nova que começa, a Vida de luta, a guerra santa da espada.

Não se arrogou o condão de taumaturgo. Quando os inimigos lhe pediam milagres provando a sua missão, contava as vitórias ganhas com auxílio de batalhões de anjos, que combatiam, dizia êle, invisíveis entre os seus guerreiros.

Não foi, tão pouco uma missão extraordinária, autorizada por milagres resplandecentes e autênticos, como era a missão de Moisés, ou a de Jesús Cristo! Consta pela vida de Maomé, pela tradição, pelas próprias palavras dêle e pelo texto do Alcorão, que o pseudo-profeta nunca operou um milagre, nem em público, nem em segredo (pgs. 49, 97 e 167).

A visão do falso profeta beligerante e totalmente secular que surgiu no período medieval persistiu até o século XX em obras em português e que recebem ampla divulgação no século XXI.

O argumento de que Muhammad seria epiléptico, muito utilizado até os dias de hoje, provavelmente surgiu com Teófanes, o Confessor (m. 818). Vemos esse argumento sendo repetido constantemente pelos apologistas, inclusive pelo teólogo católico Blaise Pascal no século XVII.

Outro argumento curioso que encontramos nas polêmicas medievais a respeito de Muhammad e o Islã, é de que a Pedra Negra na Caaba em Meca na verdade se trata da cabeça de uma estátua de Afrodite. Esse argumento aparentemente surge com São João Damasceno, mas não costuma ser replicado pelos apologistas posteriores. João afirma que os muçulmanos (nesse caso, leia-se árabes) já foram adoradores de Afrodite e que seguiram Muhammad por causa de sua "aparência de piedade", e que o próprio Muhammad leu a Bíblia [7] e, "da mesma forma, ao que parece", falou com um monge ariano que lhe ensinou o arianismo ao invés do cristianismo verdadeiramente ortodoxo, que possui sua crença na Trindade e na divindade de Cristo.

A tese de que Muhammad  teve contato com os cristãos arianos ou até mesmo cristãos ebionitas não é aceita pelo meio acadêmico, sendo mais uma especulação da apologética cristã, dado às semelhanças da doutrina do tawhid (unicidade de Deus) com o que era pregado por Ário e demais heresiarcas cristãos.  Não há, contudo, qualquer prova ou relato desse contato do profeta islâmico com esses grupos cristãos.

A falta de evidências, porém, não impediu que esse argumento fosse utilizado por demais apologistas cristãos. São João Bosco em sua obra contra as mais diversas heresias repete algo semelhante, afirmando que Muhammad teve contato com um monge cristão chamado Sérgio. Esse nome seria o equivalente para Bahira em árabe, que é mencionado na tradição islâmica. Contudo, o contato de Muhammad teria sido breve e ainda quando criança, nada que pudesse influenciá-lo no nível que os escritores cristãos acreditavam.

Apesar de toda a hostilidade e debates contra o Islã no ocidente cristão, muitos autores posteriores vieram a admirar o Islã ou a figura de Muhammad, em geral como forma de oposição ao cristianismo, principalmente em oposição ao catolicismo romano.

Em 1697, Humphrey Prideaux, ministro anglicano e doutor em teologia formado em Oxford, publicou um trabalho chamado The True Nature of The Imposture Fully Display’d in the Life of Mahomet. Prideaux lança um olhar crítico sobre muitos dos elementos “lendários” relativos ao profeta que foram populares nas polêmicas medievais e modernas sobre o profeta. O inglês afirma apresentar, ao invés de fábulas, a “verdadeira natureza” da “impostura” de Muhammad. Na sua versão do profeta do Islã, ele é dominado pelas paixões da luxúria e da ambição que o levam a fingir uma vocação religiosa, até então nada muito diferente das críticas cristãs predecessoras.

Incapaz de produzir milagres, “Mahomet” ganha adeptos por meio de ameaças de violência e promessas de um paraíso carnal, uma vez que era bem adaptado aos temperamentos dos habitantes do deserto, se comunicando com eles através da linguagem que os povos da Arábia entenderiam bem: violência e luxúria. Todavia, Prideaux é movido menos pelo desejo de atacar o Islã do que por defender o cristianismo, pelo menos não dos muçulmanos, mas dos deístas. Nas passagens iniciais de seu tratado, ele critica os deístas que afirmam que o cristianismo é uma impostura; seu objetivo é mostrar-lhes uma verdadeira impostura, a de Mahomet e depois demonstrar (em um tratado publicado no mesmo volume) que o cristianismo não é impostura, mas a verdadeira religião.

Mas o que essa crítica extremamente cristã tem a ver com o que foi mencionado a respeito de elogios a Muhammad em oposição ao cristianismo? Muito embora Prideaux não deixe claro, sua obra foca em responder Henry Stubbe, que retratou o profeta como um reformador e visionário que propôs uma revelação monoteísta renovada em uma época em que judeus e cristãos, vítimas das brigas das elites clericais, haviam se afastado de seu monoteísmo primitivo. Stubbe produziu um retrato positivo do profeta, sendo na verdade a primeira biografia totalmente positiva de Muhammad escrita por um cristão europeu (TOLAN, 2019). Stubbe e alguns de seus contemporâneos ingleses viam a Inglaterra durante e após a guerra civil como frágil e dividida, sobrecarregada com uma poderosa elite clerical corrupta, suas divisões religiosas exacerbadas por perseguições. Os viajantes ao Império Otomano frequentemente descreviam um estado próspero e florescente, onde súditos de diferentes religiões e línguas viviam em harmonia. Stubbe foi mais longe ao buscar um modelo na comunidade formada pelo próprio Muhammad [8]. Prideaux, que assim como Stubbe estudou em Oxford com o professor de árabe Edward Pococke, precisava responder a essa afronta à Igreja Anglicana.

Com o rápido avanço otomano através da conquista de Constantinopla em 1453 e com o cerco de Viena em 1683, o Império Otomano povoou a imaginação britânica por um bom tempo. Muito embora o Império não representasse uma ameaça tão concreta igual representava para outros países europeus, como na Europa central, os otomanos ainda foram alvos de extensos comentários dos ingleses. Não somente, mas a presença berbere e argelina também influenciou os comentários dos britânicos, uma vez que esses povos escravizaram alguns ingleses e por vezes atacaram territórios próximos, como as costas irlandesas, chegando até mesmo na própria Islândia em 1627.

Para muitos protestantes dos séculos XVI e XVII, incluindo os anglicanos, os católicos eram piores que os protestantes. Isso também pode ser colocado de outra forma: o Islã está mais próximo do verdadeiro cristianismo, o protestantismo anglicano, do que a Igreja de Roma. À medida que a ameaça da invasão espanhola na Inglaterra se aproximava na década de 1580, a rainha Elizabeth buscou uma aliança com os otomanos e escreveu ao sultão Murad. A rainha insistiu na concordância entre a religiosidade protestante e a islâmica; ela, como Murad, rejeitava o que era chamado de “idolatria papista”. Francis Bacon reiterou essa noção de que os ingleses e turcos eram aliados naturais na luta contra o catolicismo.

Como de costume, as visões dos europeus sobre o Islã e Muhammad tenderam a refletir suas próprias preocupações do que qualquer interesse real ou envolvimento com a história muçulmana. Na Inglaterra do século XVII, vemos debates ferozes sobre Muhammad ou o Alcorão, que na verdade são polêmicas “codificadas” sobre os reis ingleses, a guerra civil, o papel da Igreja Anglicana e o lugar dos protestantes radicais na sociedade inglesa. Muhammad e sua comunidade primeva de muçulmanos passaram a representar para alguns ingleses (como Stubbe) republicanos radicais anticlericais exemplares, uma sociedade livre em que o poder e o privilégio da Igreja foram abolidos e a liberdade religiosa foi concedida a membros de diferentes comunidades. As reações de Prideaux e outros, que defenderam a tradicional visão negativa de Mahomet, têm tanto ou mais a ver com sua aversão ao republicanismo quanto com sua defesa do anglicanismo, embora claramente os dois estivessem intimamente ligados.

No século XVIII, outros europeus começaram a ver Muhammad sob outra ótica, como estadista e legislador. Henri, Conde de Boulainvilliers (1658-1722), escreveu Vie de Mahomed que foi publicada postumamente em 1730. Ele apresenta o profeta como um mensageiro divinamente inspirado que Deus empregou para confundir os cristãos orientais que brigavam entre si, para libertar o Oriente do domínio despótico dos romanos e persas, e para espalhar o conhecimento da unicidade de Deus da Índia à Espanha.

Isso levou o autor ao seguinte questionamento: qual era a visão de Muhammad sobre o cristianismo? Sua profunda devoção à unicidade de Deus, tawhid em árabe, o levou a rejeitar as doutrinas da Trindade e da Encarnação. Mas o que mais o incomodava era a corrupção do clero. Segundo Henri:

[Muhammad] considerava os bispos, padres e o clero secular, principalmente como uma combinação política de homens, unidos com o propósito de tornar a religião subserviente às suas paixões, sua concupiscência, avareza, orgulho e poder, e que tinha o segredo de persuadir o povo de que uma obediência implícita a eles era inseparável do que era devido a Deus. Além disso, ele os considerava os verdadeiros autores de um número infinito de disputas, que então dividiam os que professavam o cristianismo; como os criadores das superstições daqueles tempos; em suma, como falsos mestres que trabalharam para mergulhar todos os homens no erro, de acordo com suas várias condições, posições e graus de capacidade.

Este é, na verdade, um ataque contra a Igreja Católica Francesa do século XVIII. Boulainvilliers coloca suas próprias críticas na boca do profeta do Islã. O clero, cobiçando o poder, as riquezas e a glória, inventa cismas e superstições para melhor afirmar e justificar seu poder sobre um povo que mantém na ignorância, segundo o autor. Desta feita, seu Muhammad é um reformador que aboliu o poder do clero para retornar a um relacionamento direto entre Deus e Seus fiéis, sem a necessidade de clérigos intercedendo pelos crentes. Não seria de se surpreender que esta diatribe velada contra o poder e privilégio da Igreja Católica tenha sido publicada em Amsterdã e Londres, e não em Paris, muito embora o autor fosse francês.

Ainda sobre autores franceses, Emmanuel Pastoret publicou em 1787 seu Zoroaster, Confucius and Muhammad, no qual apresenta a vida desses três “grandes homens”, “os maiores legisladores do universo”, e compara suas carreiras enquanto reformadores religiosos e legisladores, muitas vezes caluniados como impostores. De fato, para ele o Alcorão oferece “as mais sublimes verdades de culto e moral” e define a unidade de Deus com uma “concisão admirável”. Para Emmanuel, as acusações comuns de imoralidade do profeta são infundadas: ao contrário, sua lei impõe sobriedade, generosidade e compaixão a seus seguidores: o “legislador da Arábia” era “um grande homem”. Naturalmente, como poderia ser esperado, Pastoret não dispensa críticas à figura de Muhammad, que considerava um impostor, mas que não havia feito nada de diferente nesse sentido de seus antecessores, e que mesmo assim o profeta do Islã ainda era um grande sábio a ser seguido pelos europeus do século XVIII.

Outra figura de grande notoriedade na França foi Voltaire. O autor produziu uma peça intitulada Mahomet, uma tragédia em cinco atos escrita em 1736. A história de Mahomet se desenrola durante o cerco de Muhammad a Meca em 629, quando os dois lados estão sob uma trégua de curto prazo levantada para discutir os termos e o curso da guerra. Assim como os escritos do Conde de Boulainvilliers, acredita-se que a peça de Voltaire seja uma crítica à Igreja Católica, valendo-se de Muhammad não como uma pessoa melhor do que os clérigos católicos (igual fez Henri), mas sim utilizando a imagem de um dos principais “inimigos” da história católica para tentar demonstrar que não havia tantas diferenças entre as atitudes “fanáticas” do profeta do Islã e dos líderes da Igreja. A declaração do próprio Voltaire sobre o assunto em uma carta em 1742 foi bastante vaga: "Eu tentei mostrar em que excessos horríveis o fanatismo, liderado por um impostor, pode mergulhar as mentes fracas".

Contudo, a figura francesa que não só teve contato com o Islã, mas de fato se tornou até mesmo influente entre comunidades muçulmanas não foi um intelectual ou clérigo europeu, mas sim um governante: Napoleão Bonaparte.

Napoleão, em uma mistura de admiração real e interesse calculado, fez do profeta uma espécie de modelo, vendo-se como um novo conquistador do mundo e legislador seguindo os passos de Muhammad. Em maio de 1798, Napoleão partiu para conquistar o Egito à frente de uma frota de cerca de 55.000 homens; em junho ele capturou Malta após um breve cerco e continuou em direção ao Egito. Esperando ganhar a fidelidade dos egípcios e convencê-los a se livrar do jugo de seus mestres otomanos, ele dirigiu a seguinte proclamação ao povo egípcio, impressa em árabe e distribuída pelo país:

Em nome de Allah, o Clemente, o Misericordioso.

Não há divindade além de Allah. Ele não tem filho, nem tem um associado em seu domínio. Infelizmente, esse grupo de mamelucos, importados das montanhas de Circassia e da Geórgia, agiu de forma corrupta durante séculos na terra mais bonita que se encontra na face do globo. No entanto, o Senhor do Universo, o Todo-Poderoso, decretou o fim de seu poder. Ó egípcios, eles podem dizer a você que eu não fiz uma expedição aqui para qualquer outro objetivo além daquele de abolir sua religião; mas isso é pura falsidade e vocês não deve dar crédito a isso, mas diga aos caluniadores que eu não vim a vocês exceto para o propósito de restaurar seus direitos das mãos dos opressores e que eu mais do que os mamelucos, sirvo a Deus. - Que Ele seja louvado e exaltado - e reverencio Seu profeta Muhammad e o glorioso Alcorão.

Ó qadis, sheykhs e imãs; digam à sua nação que os franceses são também muçulmanos fiéis e, em confirmação disso, invadiram Roma e destruíram a Sé Pontifícia, que sempre exortava os cristãos a guerrearem com o Islã. E então eles foram para a ilha de Malta, de onde eles expulsaram os Cavaleiros, que afirmavam que Deus, o Exaltado, exigia que eles lutassem contra os muçulmanos. Além disso, os franceses sempre se declararam os mais sinceros amigos do sultão otomano e inimigos de seus inimigos, que Deus perpetue seu império! E, ao contrário, os mamelucos negaram sua obediência ao sultão e não seguiram suas ordens. Na verdade, eles nunca obedeceram a nada além de sua própria ganância!

Bênção sobre bênção aos egípcios que agirão de acordo conosco, sem qualquer atraso, pois sua condição será devidamente ajustada e sua posição elevada. Mas ai da aflição para os que se unirem aos mamelucos e os ajudarem na guerra contra nós, pois não encontrarão o caminho da fuga, e nenhum vestígio deles permanecerá.

Seria fácil descartar essa retórica como cínica e egoísta. De fato, no ano seguinte (no outono de 1799), enquanto se preparava para deixar o Egito, ele deixou instruções aos administradores franceses no país, explicando entre outras coisas que “é preciso ter muito cuidado para persuadir os muçulmanos de que amamos o Alcorão e que veneramos o profeta. Uma palavra ou ação impensada pode destruir o trabalho de muitos anos”.

Anos depois, no exílio na ilha britânica de Santa Helena, Napoleão escreveu suas memórias, incluindo a descrição de sua campanha egípcia. É aqui que ele desenvolve seu retrato de Muhammad como um modelo de legislador e conquistador.

A Arábia era idólatra quando Muhammad, sete séculos depois de Jesus Cristo, introduziu o culto do Deus de Abraão, Ismael, Moisés e Jesus Cristo. Os arianos e outras seitas que perturbaram a tranquilidade do Oriente levantaram questões sobre a natureza do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Muhammad declarou que havia um único Deus que não tinha pai nem filho; que a trindade implicava idolatria. Ele escreveu no começo do Alcorão: “Não há outro deus além de Deus”.

Ele se dirigiu a povos selvagens e pobres, que careciam de tudo e eram muito ignorantes; se ele tivesse falado para o espírito deles, eles não o teriam ouvido. Em meio à abundância na Grécia, os prazeres espirituais da contemplação eram uma necessidade; mas no meio dos desertos, onde o árabe suspirava incessantemente por uma fonte de água, pela sombra de uma tamareira onde pudesse se refugiar dos raios do ardente sol tropical, era preciso prometer aos escolhidos, como recompensa, rios inesgotáveis ​​de leite, bosques de cheiro doce onde podiam relaxar na sombra eterna, nos braços de divinas houris de pele branca e olhos negros. Os beduínos ficaram apaixonados pela promessa de uma morada tão encantadora; expuseram-se a todo perigo para alcançá-la; eles se tornaram heróis.

Muhammad era um príncipe; ele reuniu seus compatriotas em torno dele. Em poucos anos, seus muçulmanos conquistaram metade do mundo. Eles arrancaram mais almas dos falsos deuses, derrubaram mais ídolos, arrasaram mais templos pagãos em quinze anos, do que os seguidores de Moisés e Jesus Cristo fizeram em quinze séculos. Muhammad foi um grande homem. Ele teria sido de fato um deus, se a revolução que ele realizou não tivesse sido preparada pelas circunstâncias.

O Muhammad de Napoleão é um modelo de estadista e conquistador: ele sabe como motivar suas tropas e, como resultado, foi um conquistador muito mais bem-sucedido do que Napoleão, escondido em uma ilha varrida pelo vento no Atlântico Sul. Se prometia deleites sensuais aos seus fiéis, é porque era tudo o que eles entendiam: essa manipulação, longe de ser motivo de escândalo, como era para os escritores europeus envolvidos nas polêmicas cristãs medievais, provoca apenas a admiração do ex-imperador.

Como dito, essas são apenas algumas das inúmeras visões europeias e/ou cristãs a respeito de Muhammad e o Islã ao longo da história desde o surgimento da religião. Muitas outras polêmicas e outros comentários poderiam ser citados e que compreenderiam os mais variados séculos e pontos geográficos, como discussões entre o unitarismo e trinitarismo na Espanha e Genebra e assim por diante. Contudo, por se tratar de um tema extenso onde vários livros já foram escritos, o presente artigo teve como foco apenas alguns dos principais escritos ocidentais, procurando abordar as nuances do pensamento ocidental a respeito da religião islâmica e seu líder maior.

De meras descrições das conquistas islâmicas e a fé dos conquistadores até polêmicas apologéticas e modelo a ser seguido: o Islã e Muhammad já foram tudo no imaginário cristão e europeu, menos um tema a ser ignorado.

NOTAS

[1] Existem ainda textos mais antigos que esse que mencionam Muhammad, inclusive há menção ao profeta em um manuscrito sírio dos evangelhos de Marcos e Mateus, datado por volta de 637.

[2] Muito embora se tratem de crônicas de escritores anônimos, sabemos que uma delas foi escrita no monastério de Zuqnin na Mesopotâmia, motivo pelo qual uma das crônicas foi batizada de Crônica de Zuqnin.

[3] Onde se lê “930”, se faz referência aos anos 618-19 do calendário comum. Alguns especialistas afirmam que o correto provavelmente seria outra data, indicando na verdade os anos 628-29 (940). Contudo, o número 930 pode ser encontrado em outras fontes também sobre os mesmos relatos, como em Jacó de Edessa e até mesmo em inscrições em paredes de igrejas no norte da Síria, que relatam a “chega dos árabes em 930”.

[4] Muawiya foi escriba do profeta Muhammad e o primeiro califa (e fundador) do califado Omíada.

[5] O texto do padre Paulo a respeito dos mártires cristãos vítimas do Islã já foi respondido pela página, inclusive pelo mesmo autor do presente texto. A resposta pode ser encontrada aqui.

[6] São Tomás não foi o primeiro a defender esses argumentos, pois como dito, as polêmicas cristãs a respeito do Islã eram muito semelhantes umas com as outras, e até hoje carregam inúmeros aspectos dos debates medievais.

[7] A tradição islâmica afirma que o profeta era iletrado.

[8] Pois como bem sabemos, o profeta abrigou em Medina judeus e cristãos, criando inclusive uma constituição que permitia a liberdade religiosa de outros credos, a famosa Constituição de Medina.

REFERÊNCIAS

ANTHONY, Sean W. Muhammad and the Empires of Faith: The Making of the Prophet of Islã. University of California Press, 2020.

COSTA, Ricardo da. Maomé foi um enganador que fez um livro chamado Alcorão: A imagem do Profeta na filosofia de Ramon Llull (1232-1316). 2011.

FUNKENSTEIN, Amos. “History, Counterhistory, and Narrative,” in Saul Friedlander, Probing the Limits of Representation: Nazism and the “Final Solution”. Harvard University Press, 1992.

GRUBER, Christiane; SHALEM, Avinoam. The Image of the Prophet between Ideal and Ideology. Walter de Gruyter, 2014.

HOYLAND, Robert G. “The Earliest Christian Writings on Muhammad: An Appraisal, in MOTZKI, Harald. The Biography of Muhammad: The Issue of the Sources. Brill, 2000.

LOMBAERDE, Júlio Maria de. São Gabriel, Maomé e o Islãismo. 1954.

TOLAN, John. Faces of Muhammad. Princeton University P